A maçonaria, como toda instituição normativa, faz largo uso, em seu processo pedagógico, dos mitos. O mito, a exemplo da parábola, é instrumento eficaz na transmissão de idéias e valores considerados importantes e eram ambos, na Antigüidade, quase que exclusivos como estratégias discursivas de edificação moral.
Na maçonaria, o mito central é o da morte de Hiram Abif, sendo que a história da construção do Templo de Salomão serve-lhe, ao mesmo tempo, de preâmbulo e de contexto. Por isso, à evolução gradual do maçom correspondem as sucessivas transformações do mito, num processo dialético de crescimento onde o mesmo mito engendra novas e sucessivas visões de mundo, formando uma espiral ascendente.
Desde os primórdios da humanidade, o ser humano atém-se menos aos fatos e mais aos “significados” a ele associados. Essa tendência tem duas funções importantes num mundo que é um estranho desafio à compreensão humana: apazigua as emoções e dá sentido às ações.
Enquanto que o conhecimento científico se baseia em argumentos calcados em fatos e provas que pouco se importam com o sentimento humano, apelando para a razão, o mito tem sua veracidade baseada apenas na “aceitação” e na “coerência”. Daí resultarem essas duas formas de conhecer o mundo: a científica, denominada paradigmática, e a segunda, denominada narrativa*.
Embora diferentes, as duas formas de compreender o mundo são complementares, pois enquanto a primeira busca “a verdade”, a segunda busca uma explicação coerente e satisfatória às pessoas. A ciência pode criar critérios que distingam o bem do mal, a vida da morte; só a lenda e o mito podem nos inclinar a um ou a outro, pois organizam em torno de uma idéia toda uma constelação de crenças, sentimentos e imagens que induzem atitudes e comportamentos.
Algumas histórias que narram a origem do Universo, da vida e do homem, tornaram-se mitos coletivos e representam já o conjunto de verdades metafísicas das sociedades.
A ênfase maior da educação ocidental, tanto formal quanto informal, é na valorização do conhecimento científico, donde se compreende porque todo cartomante quer ser “professor” e toda doutrina esotérica se diz “ciência” do ocultismo. Em nossa sociedade, o que não é “científico” não é digno de crédito.
Mas como a visão científica de mundo não dá sentido aos desejos, nem explica os dramas e sofrimentos humanos, atende ao lado racional do homem, mas deixa em completa carência seu lado emocional. E esse é tão importante quanto o outro no equilíbrio psíquico (...senão mais!).
Na vã esperança de encontrar significado para sua vida pelo uso e abuso da linguagem racional, o homem moderno vive conflitos cada vez mais insuportáveis. Esse fato, se não é causa eficiente, é importante variável interveniente na explicação do surto de movimentos e seitas “irracionais” que se multiplicam ad-infinito nos dias de hoje; também, no outro extremo, ajuda a explicar o niilismo e ceticismo exacerbados do homem moderno.
Neste último século, muitos e importantes estudiosos do homem, como Karl Jung, Mircea Eliade, Joseph Campbell, vêm alertando para a importância de integrar a visão científica, racional, linear, com o modo narrativo, mítico, para que se possibilite uma nova harmonização da consciência humana.
Que o espírito humano não evoluiu no ritmo e velocidade da ciência e da tecnologia, é fato indiscutível. Numa época onde os sintomas de intoxicação da racionalidade são tão visíveis; onde os critérios da inteligência emocional já são considerados mais importantes que o quociente intelectual da racionalidade; temos que repensar os valores relativos que atribuímos às formas de percepção do mundo e da realidade.
Por isso, há algum tempo, por razões pessoais e profissionais, venho pensando a questão do mito. Além de ser instrumento pedagógico fundamental na Maçonaria, se constitui tema instigante em nossa época, tão orgulhosa de seu racionalismo e de sua tecnicidade.
A teoria de Max Weber do "desencanto" da sociedade moderna – no sentido da secularização e racionalidade crescentes – vem tendo hoje sua contraprova na descoberta dos mitos modernos – que, por fazerem parte de nosso caldo cultural são mais difíceis de serem percebidos –, que modelam idéias e comportamentos de indivíduos, grupos e inclusive organizações econômicas. 16 A resistência ainda encontrada em relação aos mitos, fruto de uma sociedade que fez o corte cartesiano 17 entre as coisas do espírito (emoções, intuição, transcendentalidade) e as coisas da matéria (racionalidade científica, praticidade, fruição), desvaloriza o mito no "mercado das idéias".
Esse meu interesse pelo tema foi recentemente reativado por um excelente artigo da psicóloga Alessandra F. Carreira 18, que, conquanto tenha por objeto o "mito individual" numa abordagem psicanalítica, renovou minha vontade de voltar ao tema com um tratamento novo e enriquecido por citações que reforçam a linha de raciocínio que venho há tempos perseguindo quanto à função do mito na Maçonaria. Lévi-Strauss 19 afirma que o mito é um sistema que se relaciona concomitantemente com o passado, o presente o futuro, pois, apesar de descrever um fato que ocorre num momento definido do tempo, é como se transmitisse não esse fato, mas uma estrutura. Essa estrutura, que é a lógica dominante da narrativa, é que se repete continuamente no mito.
Dessa forma, o mito é uma "história" que tem simultaneamente tanto uma função sincrônica (não-histórica, relacionando elementos de forma a transmitir uma mensagem) quanto diacrônica (histórica, inserida num período de tempo determinado).
Por nos colocar simultaneamente diante de uma narrativa que nos apresenta uma descrição de um fato aparentemente histórico e de uma lógica ("mensagem") que o ultrapassa, Rocha 20 coloca que o mito não é passível de interpretação, mas exige uma interpretação.
Os estruturalistas já haviam apontado nos fenômenos sociais essa possibilidade de mudança contínua dentro da permanência da mesma estrutura (algo como "as coisas mudam para que permaneçam sempre como estão").
O mito permite, por essa sua condição de temporalidade-atemporalidade, uma sucessão de interpretações que produzem uma evolução em espiral, isto é, variando-se a narrativa sempre em torno do mesmo eixo se vai evoluindo no sentido de níveis de percepção cada vez mais amplos. Enfatizando a "estrutura" e não os "fatos" narrados, Campbell 21 nos diz que o mito é a verdadeira história, pois ele não pretende descrever um fato histórico verdadeiro, mas deseja fazer alusão a uma verdade que, de outra forma, seria inenarrável, pois pareceria apenas "um mito", no sentido usual de "uma mentira". É a mesma opinião de Boyer 22, que, citando Lacan, nos diz que "(...) essa ficção mantém uma relação singular com alguma coisa que está sempre por trás dela e da qual ela porta, realmente, a mensagem formalmente indicada, a saber, a verdade. (...) A verdade tem uma estrutura, se podemos dizer, de ficção".
II
Essa "defesa" teórica do mito, como portador de uma mensagem significativa, não nos exime, contudo (talvez até nos obrigue a), de enfrentarmos uma questão extremamente importante, que a esta altura já deve estar na mente do leitor: mas em função de que o mito, uma narrativa de fatos históricos visivelmente inconsistentes, é aceita por uma coletividade de homens que se pretendem "racionais" e "modernos"?
Para compreender esse aparente paradoxo, temos que tratar separadamente os dois substantivos envolvidos na questão: "homens" e "coletividade".
A essência do Homem (ser humano) é sua dialeticidade, seu caráter eminentemente histórico. O ser humano não é um "Ser", mas um "Vir a Ser". O ser humano está em constante construção, e se define mais pelo caminho que pelos objetivos (os quais, diga-se de passagem, estão sempre além). Dado isso, sua estrutura existencial e a do mito são isomórficas: seu "Ser" é simultaneamente definido pelo passado, pelo presente e pelo futuro (e, acrescentaríamos, pelo transcendente), apresentando tanto um aspecto de permanência quanto de mudança. Se a descrição dos fatos históricos concretos, acontecidos, realizados, falam dos feitos humanos, de seus produtos, o mito, com sua intangibilidade, fala da e à própria essência do humano.
Falar de coletividade, por seu turno, implica uma abordagem sociológica, do ser humano enquanto ser gregário, parte de uma História que é coletiva e que contorna sua história individual assim como as margens de um rio contornam suas águas, orientando seu fluxo.
A História do Ocidente é a História da evolução social do modo de produção capitalista, que, para resumir ao que nos interessa, tem acentuado dois processos que, aparentemente distintos, se produzem, reproduzem e reforçam mutuamente: a ideologia da individualização (ilustrada pelo incentivo ao consumo individual e ao narcisismo, pela valorização individual no trabalho, pela política de diferenciação salarial, pelo enfraquecimento das organizações sindicais, etc.) e pela separação entre o trabalhador e o produto final de seu trabalho, que faz com que não nos reconheçamos mais naquilo que produzimos (ao contrário dos mestres artesãos, por exemplo).
A resultante desses dois processos é um sentimento de separação da coletividade, de nãopertinência, de isolamento, um sentimento de que o social não é uma responsabilidade nossa.
Como ser essencialmente social, contudo, o ser humano, pela necessidade de pertencer à comunidade, fica com um "furo" existencial, um vazio, um profundo sentimento de solidão, que gera uma necessidade profunda de re-ligar-se ao coletivo, de re-pertencer à comunidade. Aliás, re-ligação é a origem etimológica da palavra religião.
Não é essa a base de onde a propaganda consumista tira sua força: "Torne-se diferente. Compre o que todo mundo compra"?.
Pertencer à Ordem, satisfaz uma série dessas carências psicossociais criadas pela evolução histórica do capitalismo: nosso sentimento de solidão; nosso sentimento de des-pertinência; a secularização de nossos valores, que nos separou da fonte transcendente de explicação de nossas existências; nosso sentimento de pequenez, por nos sentirmos indivíduos isolados frente a organizações econômicas, sociais e culturais cada vez mais poderosas; e outras razões mais pessoais que podem ser acrescentadas ad infinitum.
Essa necessidade psicossocial de religar-se, de tornar a pertencer, é satisfeita pela adesão ao grupo - à Loja, como instância concreta de participação, e à Ordem, como instância simbólica de Poder.
Mas isso, por si só, não explica o porquê de, entre tantas ofertas, optarmos por essa ligação específica. Aí aparece a importante função desse duplo caráter (imanente e transcendente, histórico e a-histórico) do mito. O mito que com-partilhamos, no nível narrativo, por ser também "um segredo", tanto nos identifica (nos dá uma identidade) quanto nos distingue (nos faz diferentes e - se isso não ofender ninguém - nos dá um certo sentimento de superioridade).
No nível da Verdade que ele contém - verdade efetivamente misteriosa, pois que nos introduz, pela Iniciação, numa senda que nos compromete com uma busca que envolverá nossa vida toda, em níveis cada vez mais profundos, dos quais os três Graus simbólicos são apenas pálidas representações - ele atende à nossa necessidade de transcendência, pois "explica" o porquê do sentimento de perda que experimentamos, a "perda da sabedoria ancestral", a "nossa" perda do paraíso.
Nesse sentido, o mito que nos une torna-se nosso "Graal", nossa "pedra filosofal", e talvez por isso (por buscar uma Verdade racional e transcendente) tenhamos esse sentimento de que a Maçonaria é uma "religião laica", ou "uma racionalidade mística", ou a "religião natural" que atraiu antigos e modernos.
III
Nesta altura de nossa reflexão, chegamos à terceira, mas não menos importante, questão: se vincularmos a Maçonaria à questão sociológica de uma sociedade que se des-humaniza de forma tão evidente por razões morais, políticas e econômicas as mais diversas, a Maçonaria faz parte do problema ou da solução?
Encontramos a resposta na própria filosofia que se desenvolve a partir da busca da Verdade que a Ordem vem secularmente fazendo. O caráter dialético dessa filosofia, que se impõe em nossas Instruções, nas pesquisas e nas reflexões sobre a Ordem, deriva como conseqüência necessária do caráter dialético de sua base: o mito. Não é isso (só para não nos alongarmos em mais argumentos) para o que se alerta quando refletimos sobre "o perigo" do número Dois, ou sobre como o Um que se revela Dois tem sua síntese (e superação) no Três?
Se nos deixamos seduzir por um dos termos da proposição, o aspecto da satisfação de nossas necessidades psicossociais, sentindo-nos "justificados" e "satisfeitos", então estamos a um passo de nos tornarmos adeptos do "narcisismo coletivo" que acentua o quanto somos seres "especiais", detentores de uma verdade que os pobres profanos desconhecem. Aí, desconhecedores do conteúdo, nos satisfazemos com as formas, e idolatramos os símbolos (inclusive medalhas e diplomas) – isto é, tomamos a representação como se fosse o objeto que ela representa.
Cultivaremos a "alienação" – uma falsa explicação da realidade, falsa porque toma a imagem pelo objeto e confunde a essência com a aparência. Não percebemos que, entre os buscadores sinceros da Verdade, "nem todos os que estão são e nem todos os que são estão". Como conseqüência, dividimos o mundo de forma maniqueísta entre bons (nós) e maus (os profanos), entre puros (nós) e impuros (os profanos), e (heresia das heresias maçônicas) criamos um novo fundamentalismo. Com essa opção, fazemos parte do problema, pois apenas acentuamos o mal que desejamos eliminar: a inconsciência da unidade do Humano, que não admite separações ideológicas, sejam elas econômicas, políticas ou religiosas. Isso talvez explique parte das "desilusões", do "absenteísmo", e do apego orgulhoso aos "feitos" e aos "heróis" de nosso passado – apego que pode ser legítimo, se não transformar esses feitos e esses heróis de "exemplos" em "medalhas" 23. Se, por outro lado, nos conduz à Verdade que o "segredo" do mito, com sua dialeticidade pretende nos transmitir: que somos parte d'A Verdade, por mais que a desconheçamos, e isso faz de nós uma Unidade (o que não exclui as diferenças naturais), seres com compromissos coletivos e universais (nossa filosofia tem resistido aos séculos porque transmite essa parcela da Verdade, não só nas linhas e entrelinhas das Instruções, como no Ritual, nas Iniciações e nos símbolos); que, como corolário dessa proposição, toda ideologia que pretenda romper com essa unidade é sectária e des-humana e, como tal, tem que ser combatida.
Que, como conseqüência dessas proposições, temos um compromisso de engajamento ao processo de re-humanização do mundo, compromisso que nos obriga a – mesmo que como indivíduos "estejamos" vinculados a uma religião ou a um partido – uma postura teleológica que nos faz adotar valores que estão sempre acima e além dos partidos e das religiões, nos unindo no respeito fraterno às diferenças individuais, culturais, políticas e religiosas; então estaremos contribuindo para o processo de desalienação do ser humano, para a realização (mesmo que utópica) da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade, e aí, sim, faremos parte da solução e não do problema.
In Pedra por Pedra - Francisco Cezar de Luca Pucci
Bibliografia:
16 ZIEMER, Roberto. Mitos Organizacionais. São Paulo: Atlas Editora, 1996.
17 A hipótese de que tal cisão se deve a Descartes ainda está por ser demonstrada.
18 CARREIRA, Alessandra Fernandes. O Mito Individual como Estrutura Subjetiva Básica. Revista Psicologia Ciência e Profissão, nº 3, 2001, p. 58.
19 LÉVI-STRAUS, C. (1970) Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro. In: CARREIRA, Alessandra Fernandes, op. cit.
20 ROCHA, E. (1991) O Que é Mito. São Paulo: Brasiliense. In: CARREIRA, Alessandra Fernandes, op. cit.
21 CAMPBELL, Joseph. (1991) O Poder do Mito. São Paulo: Editoria Palas Athena.
22 BOYER, P. (1977) O Mito no Texto. In: NASCIMENTO C.A.R. do. Atualidade do Mito. São Paulo: Livraria Duas Cidades. Citado em: CARREIRA, Alessandra Fernandes, op. cit.
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