quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

A DESCOBERTA DA ESPIRITUALIDADE


Você já se perguntou o que é espiritualidade? Para muitas pessoas, a espiritualidade é aquilo que é vivenciado por quem professa uma religião. De fato, dentro do universo das religiões, com seus ensinamentos e cultos, pode-se entrar numa atmosfera de profunda elevação espiritual. Além disso, nossa cultura religiosa ocidental ensina que não há espiritualidade fora da religião, e diferentes religiões disputam o privilégio de ser o único caminho para Deus.
No entanto, Gordon Allport, um dos mais importantes psicólogos do século XX, em um estudo sobre preconceito observou que, paradoxalmente, no meio religioso encontram-se tanto os mais importantes exemplos de compaixão e tolerância, como os mais perturbadores exemplos de preconceito, violência ideológica e intolerância. Isso significa que professorar uma religião não está necessariamente associado a uma genuína vivência espiritual. E, portanto, a pergunta continua: o que é espiritualidade?
Analisada do ponto de vista subjetivo, ou seja, naquela dimensão que se passa no interior de nossa mente, a espiritualidade surge como uma qualidade especial da consciência da ordem do amor, da sabedoria e da paz interior. Ela pode ser inspirada e estimulada pela prática religiosa ou, como percebeu Allport, pode ser suprimida por uma prática inadequada e imatura, tanto do ponto de vista existencial como ético.
Quando a vivência religiosa atua positivamente na geração da qualidade espiritual da consciência, o faz através de exemplos e ensinamentos libertadores, que geram um entendimento da realidade que é inspirador e induz à ação e ao aprofundamento. A qualidade espiritual da consciência, então. cresce firmemente gerando harmonia à sua volta e distribuindo aos mais próximos a inspiração que a alimenta.
No entanto, quando a prática religiosa suprime a espiritualidade, surgem estados de fanatismo e credulidade, julgamentos arrogantes em relação ao diferente, domínio sobre a consciência ele outros, supressão da autonomia e da liberdade de pensamento, perda da espontaneidade e propensão a representar papéis de superioridade. Nesse caso, a vivência religiosa pode gerar grande pre­juízo nas relações interpessoais e desestabilizar interiormente seus praticantes. Impossibilitados de contar de forma autônoma com seus recursos interiores, jáque sua liberdade mental e discernimento são vistos com desconfiança, tornam-se cada vez mais dependentes de figuras externas de autoridade.
Uma interessante definição de espiritualidade foi dada por Annie Besant, uma ativista social que viveu no final do século XlX e começo do século XX, e que se tornou teosofísta após conhecer a fundadora do movimento teosófico, Helena Blavarsky. Besant afirmou queespiritualidade é a percepção da unidade. O conceito de unidade remete a ensinamentos antigos presentes em muitas tradições. e afirma que existe uma realidade última que está na origem do mundo manifestado, onde todas a coisas estão conectadas e compartilham da mesma natureza e origem.
A noção de interdependência, presente no paradigma sistêmico que surgiu da física de partículas e que rapidamente domina os mais diversos cenários atuais da ciência, confirma esse antigo axioma. Do ponto de vista da consciência, portanto, a espiritualidade implica em ultrapassar o pensar discriminativo. N0 entanto, isso é insuficiente para a compreensão do que Anníe Besant procurou mostrar.
Besant conhecia profundamente o pensamento oriental, pois viveu toda a fase madura de sua vida na Índia, estudando e meditando sobre seus legados espirituais. Profunda conhecedora da filosofia do yoga, ela sabia que a espiritualidade está associada à existência de camadas gradualmente mais profundas de nossa mente. Em outras palavras, a dimensão espiritual é a essência de nós mesmos, sendo a mente como a vivenciamos e todo o funcionamen­to psicológico que nela toma lugar apenas a camada mais externa de nosso ser. Para oyOga, nossa verdadeira natureza espiritual está semiadormecida em suas regiões mais profundas, impedida de se manifestar plenamente em razão da superficialidade de nossa mente e ela falta ele sintonia com os estados interiores.
Um termo sânscrito, buddhi, esclarece a definição proposta por Besant. Buddhi significa inteligência espiritual, ou intuição, a capacidade de compreender de forma direta a essência e a natureza das coisas. Nos sábios, buddhi está desperto, gerando aquela classe de discernimento que honra esse termo, ou seja, ir ao cerne das coisas. Quanto mais presente está buddbi, mais o centro da consciência está próximo da unidade, e mais firme é a noção de interdependência e da consequente capacidade de identificar-se com todos os seres comoparte de si mesmo, ou mais propriamente, sendo todos parte do mesmo ser.
Além ela noção de unidade, outros dois aspectos da filosofia oculta da índia explicam o contexto conceitual das palavras de Besant, O primeiro é o de que tudo está vivo e expressa algum grau de consciência. A noção ocidental de seres animados e inanimados não existe nessa visão. Mesmo os seres considerados inanimados, como os minerais, possuem algum grau de consciência, e na dimensão da vida e da consciência estão todos ligados. Mesmo os objetos construídos são átomos e moléculas que estão vivos e também possuem certo grau de consciência.
O segundo aspecto é que existe uma relação de analogia e simbolismo entre micro e macrocosmo. Portanto, o ser humano guarda na profundidade espiritual de seu ser as mesmas forças e princípios que criaram o universo. A mente humana é expressão da mente cósmica que arquitetou o universo. O poder criador que move todas as coisas também se move em nós, e a força aglutinadora e geradora de vida se expressa em nós como amor nas mais diversas formas.
A questão central da espiritualidade, portanto, é como descobrir em nós o seu poder. Se é verdade que ela é a essência de nosso ser, estarmos privados de sua presença significa estarmos exilados de nós mesmos. Para tal exílio, não há movimento físico de volta possível, porque a cisão ocorre na subjetividade da consciência. Tal exílio equivale a estar condenado a uma constante insatisfação existencial, onde a diversão do momento sempre perde o seu encanto. Buddhi, ao contrário, se expressa como felicidade sem causa, um estado de plenitude e de puro ser que nenhuma busca exige ou necessita.
Talvez a primeira atitude segura associada ao despertar da espiritualidade seja assumir que somos apenas alunos e sempre seremos.Mesmo alguém que está capacitado para ensinar algo sobre espiritualidade a quem está numa fase menos adiantada sempre é uma criança face às crescentes complexidades e aos mistérios que se encontram no cantinho, De fato, abandonar a postura de aprendiz pode ser um grave risco para o caminhante, que pode satisfazer-se por orgulho e arrogância com supostas posições de superioridade, Essa imersão de perspectiva está na origem da derrocada de grandes movimentos espiritualistas.
A postura do aluno (discípulo) implica assumir a ignorância e ser preenchido pela sinceridade do perguntar e do escutar, O caminho passa a ser, então, o deleite de descobrir o impressionante e encantador espetáculo divino, cuja sabedoria vai sendo gradual e parcialmente desvelada. Esse é um processo pleno de beleza e encantos surgidos da comunhão com a grande mente. É ao mesmo tempo pleno de decepção e dor resultantes da nossa ignorância. A superação da ignorância espiritual, sempre lembrada pela dor, faz gra­dualmente aflorar a qualidade da sabedoria, da paz e do amor característicos da espiritualidade real.
Os termos aluno, aprendiz ou discípulo tornam-se ainda mais apropriados quando observados dois aspectos do caminho. O primeiro é que se cria uma relação de aprendizado consciente em que quem ensina é a própria vida. A cada pergunta, consciente ou inconscientemente formulada pelo aprendiz, haverá uma resposta. O que fica em questão, aqui, passa a ser a capacidade do aprendiz identificar e escutar o que a vida traz como resposta. Esse é um exercício encantador que fortalece imensamente a confiança no processo do aprendizado e deixa muito evidente que estamos envoltos num incrível mistério. A pequena mente do aluno e a grande mente cósmica começam a dialogar.
O segundo aspecto é explicado pela filosofia oriental como o estabelecimento de um vínculo do aprendiz com mestres espirituais, vínculoesse que o aprendiz pode desconhecer. O que ocorre é que, quando o pensamento purificado e sincero do buscador atinge níveis vibratóriosmais sutis, inevitavelmente entra nas faixas vibratórias que são o campo de ação dos verdadeiros mestres espirituais. Tal como sabemos quando alguém bate à porta de nossa casa, esses seres iluminados que acompanham secretamente o desabrochar espiritual de todos os seres não deixam de perceber quando alguém atinge ou toca os reinos invisíveis mais sutis da realidade, mesmo tendo o pensar e a aspiraçãoainda incipientes. A criação desse vínculo, mesmo que o aspirante não saiba, será de fundamental importância para seu futuro.
Assim como um copo d'água pode guardar em seu fundo, por decantação, partículas de sujeira, também nós temos nosso psiquismo carregado de toxinas emocionais e mentais. Carregamos um enorme peso psicológico de crenças, condicionamentos, autoimagens negativas, culpa, autocobranças que geram inquietação, egocentrismo e isolamento. Isso nos torna psicologicamente pesados, especialmente pelos nódulos emocionais que geram as defesas que formam nossa personalidade. Por defesa. nos tornamos egocentrados. em constante busca de nossos interesses. Apesar de ser considerado "normal" em nossa sociedade, esse funcionamento é pleno de motivações egoístas que se tornam um impedimento intransponível para quem deseja tocar essas regiões vibratórias mais sutis.
Gerar a motivação correta, desprovida de egoísmo. é uma fase crucial do verdadeiro despertar espiritual. Equivale a colocar água tre­mendamente pura no copo, o que inevitavelmente levanta a sujeira depositada no fundo. Superar o peso psíquico das motivações egoístas éum trabalho alquímico que cabe ao próprio aprendiz. Descartar o que se tornou velho, como conceitos e crenças que não servem mais, buscas obsessivas que só nos prendem, hábitos perniciosos e a capacidade de gerar sofrimento são a desintoxicação necessária ao aprendiz. Ele deve aprender a desaprender. É necessário reconquistar a espontaneidade interior de uma criança tendo a experiência e maturidade de um ancião. Apenas a leveza da motivação inegoísta possibilita isso. O copo, então, estará cheio de água pura.
Se o desaprender é fundamental, há também o aprender fundamental: o de abrir-se para o novo, o desconhecido, e fazê-lo sem ser tomado pela insegurança, confiando apenas no próprio discernimento e na natureza espiritual da realidade. Com a capacidade de olhar de forma nova para tudo, comprometida com a verdade e com a motivação de gerar felicidade para todos os seres, a qualidade amorosa, pacífica e sábia da espiritualidade vai ocupando irreversivelmente o lugar central que lhe está reservado em nossa vida e em nossa consciência.
Autor: Marco Antônio Bilibio Carvalho, psicólogo e membro da Sociedade Teosófica.
Fontehttp://lojateosoficadharma.blogspot.com.br/2016/09/a-descoberta-da-espiritualidade-marco.html

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

EM BUSCA DE UMA TRADIÇÃO INVENTADA


A história é continuamente reescrita. À medida que a realidade presente muda, as interpretações acerca de um fato passado também são alteradas, buscando respostas que correspondam melhor às necessidades do tempo atual. Foi assim com a Inconfidência Mineira (1789). Poucos momentos foram tão debatidos, reescritos e apropriados quanto esse.
Durante boa parte do século XIX, a Inconfidência não assumiu lugar de destaque na historiografia brasileira. Tal situação modificou-se apenas na segunda metade do século, quando o princípio da nacionalidade tornou-se uma questão premente a ser resolvida. Urgia ao Brasil a construção de laços de pertencimento capazes de criar um sentimento nacionalista, e era fundamental encontrar os elementos fundadores da nação, construindo uma identidade que pudesse particularizá-la. Com o golpe militar que inaugurou a República em 1889, essas necessidades foram reforçadas. O regime instaurado de cima para baixo estava longe de apresentar-se como uma demanda da população em geral. Assim, era preciso legitimá-lo perante o povo, apresentando-o não como um elemento estranho à sociedade, mas sim como um desejo histórico presente havia muito tempo.
A solução para essas questões passava pela criação de um mito fundador que estabelecesse uma ideia de continuidade entre o fato presente e o passado brasileiro. Era necessário criar uma tradição republicana para a nação por meio de heróis que já tivessem ansiado pela implantação desse regime. Nessa ocasião, a Inconfidência Mineira e Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, assumiram com propriedade o papel de precursores da República.
A escolha de Tiradentes como herói nacional não é difícil de ser explicada. Com a publicação da obra de Joaquim Norberto de Souza e Silva, História da Conjuração Mineira (1873), que ressaltava o fervor religioso do personagem nos últimos momentos de sua vida, inúmeras representações simbólicas tornaram-se possíveis, aproximando-o à figura de Cristo. Outro fator importante para essa opção foi que o movimento não aconteceu efetivamente, o que poupou os inconfidentes do derramamento de sangue e os manteve imaculados. Eles foram apenas vítimas da violência, nunca agentes.
A Inconfidência como objeto passível de ser novamente apropriado permitiu à historiografia refazer as linhas gerais do levante sempre que a conjuntura política brasileira teve necessidade de reavivar o sentimento nacional. Seu legado simbólico foi retomado de tempos em tempos, mais especificamente nos momentos de rupturas históricas no decorrer do século XX. Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e até mesmo os militares de 1964, auto-intitulados “os novos inconfidentes”, apropriaram-se do fato histórico em favor de seus interesses políticos. Sob novas roupagens, o mito repetia-se incessantemente.
Contudo, não foram apenas os governos que utilizaram a influência do movimento e de seu herói. Muitas instituições também procuraram um “lugar ao sol” nessa festa de apropriações simbólicas. Foi o caso da maçonaria, que tomou Tiradentes como seu símbolo maior no Brasil ainda no século XIX. A partir de 1870, ocorreu um crescimento acelerado do número de lojas maçônicas no país e muitas delas foram batizadas de “Tiradentes”. Frequentemente, suas bibliotecas tinham o inconfidente por patrono e até mesmo os jornais maçônicos carregavam seu nome. Já no século XX, Tiradentes pareceu ganhar em definitivo um lugar de destaque no panteão maçônico, tornando-se patrono da Academia Maçônica de Letras.
Mas por que esse mineiro poderia representar a maçonaria? Que legitimidade haveria nisso? “Simples”, responderiam os historiadores ligados a essa organização: Tiradentes teria sido maçom, e a Inconfidência Mineira, uma conspiração maçônica em prol da libertação nacional!
Muitos maçons, historiadores ou não, aventuraram-se a escrever sobre o episódio para desvendar sua “verdadeira” história e demonstrar o papel crucial da maçonaria na definição dos acontecimentos de 1789. Em geral, essas narrativas começam demonstrando que a Inconfidência não foi um episódio regional. Tal movimento teria feito parte de um projeto internacional elaborado para tornar livres todos os povos oprimidos. A Inconfidência, a Revolução Francesa e a Independência dos Estados Unidos seriam expressões de um mesmo fenômeno: o do anseio revolucionário por independência, democracia e liberdade que sacudiu a Europa e a América por meio das atividades maçônicas.
Desse modo, o sentimento nativista não seria suficiente para explicar os anseios dos inconfidentes pela República. Acreditar apenas nisso, segundo os escritores da maçonaria, seria “ingenuidade e romantismo”. Os conspiradores mineiros agiriam inspirados não só pela ideia de nação brasileira, mas, principalmente, pelos sentimentos de sua organização. “Mirando-se no exemplo vitorioso da revolução americana guiada por George Washington, Thomas Jefferson, etc., (...) os líderes inconfidentes questionaram o que a metrópole impunha como sendo inquestionável”, escreve o maçom Raymundo Vargas. Eles não teriam planejado uma revolta se não tivessem certeza de que os “irmãos” americanos prestariam auxílio ao restante do continente. O projeto também incluía a Europa, e a França foi o palco escolhido para os contatos que uniriam o Brasil “a essa corrente universal de liberdade”.
A narrativa maçônica apresenta-se confusa para aqueles que sabem que a instituição foi fundada no Brasil em 1801. A Inconfidência poderia caracterizar-se como um movimento maçônico se ainda não havia lojas no Brasil? De acordo com seus escritores, haveria, sim, centenas de maçons organizados em lojas, mas estas funcionavam clandestinamente, já que a ordem se encontrava proibida pela legislação portuguesa.
O relato que inaugurou a crença em uma Inconfidência de caráter maçônico partiu de Joaquim Felício dos Santos, que, curiosamente, não era maçom. Em sua obra Memórias do distrito diamantino da comarca do Serro Frio (1924), ele escreve que a “Inconfidência de Minas tinha sido dirigida pela maçonaria, Tiradentes e quase todos os conjurados eram pedreiros-livres”. Com base nessa passagem, estudiosos, maçons ou não, começaram a associar automaticamente a Inconfidência à maçonaria. Surgiu a crença de que Tiradentes, que ia muito à Bahia para refazer o sortimento de mercadorias de seu negócio, acabou, numa de suas viagens, tornando-se maçom. Ele seria o responsável pela criação de uma loja maçônica, local onde os conjurados teriam sido iniciados na organização, “introduzida por Tiradentes quando por aqui passava vindo da Bahia para Vila Rica”, escreve Tenório D'Albuquerque.
Prova maior da importância do triângulo como símbolo maçônico teria se dado no momento da execução de Tiradentes, quando o maçom e capitão Luiz Benedito de Castro não distribuiu as tropas em círculo como de costume, e sim formou um triângulo humano em torno do patíbulo. A multidão “não poderia compreender o significado simbólico daquele triângulo, mas Tiradentes, no centro dele, compreendia aquela última e singela homenagem”, descreve Raymundo Vargas.
Finalmente, as narrativas maçônicas encontram explicação também para um instigante mistério: o sumiço da cabeça de Tiradentes. A urna funerária contendo a cabeça do herói da Inconfidência teria sido retirada secretamente às altas horas da noite pelos irmãos maçons remanescentes do movimento. O roubo da cabeça seria, segundo Raymundo Vargas, uma das primeiras afrontas da maçonaria às autoridades repressoras portuguesas, mostrando-lhes que “a luta só começava”. Segundo autores maçons, não teria sido por acaso que, no mesmo local onde a cabeça de Tiradentes fora exposta, o então presidente da província mineira e grão-mestre da maçonaria brasileira em 1874 Joaquim Saldanha Marinho, em 3 de abril de 1867 ergueu uma coluna de pedra em memória do mártir maçom.
Vários outros aspectos da Inconfidência foram trabalhados pelos autores ligados à organização, tais como a personalidade maçônica do Visconde de Barbacena ou as “irrefutáveis” provas da viagem de Tiradentes à Europa para fazer contato com seus irmãos da ordem. Percebe-se que a maçonaria, por meio de seus intelectuais, construiu uma série de argumentos para não deixar dúvida quanto ao papel de destaque dessa instituição no desenrolar de todos os fatos da Conjuração. Recentemente, surgiram alguns trabalhos elaborados por historiadores maçons mais criteriosos que refutam muitas das teses aqui apresentadas. Contudo, estes ainda não foram suficientes para derrubar do imaginário maçônico a figura do herói mineiro.
De fato, existem vestígios de que maçons passaram pelas Minas setecentistas. Analisando os processos inquisitoriais luso-brasileiros de fins do século XVIII e início do XIX, encontram-se denúncias contra mineiros de Vila Rica e do Tijuco, acusados de libertinos, heréticos e maçons. Sabe-se também que muitos estudantes brasileiros em Coimbra e Montpellier iniciaram-se na maçonaria europeia e trouxeram seus valores e ideias para o Brasil. Alguns deles, como José Álvares Maciel e Domingos Vidal, ajudaram nos planos dos inconfidentes.
Para além da discussão da veracidade ou não desses relatos acerca da Inconfidência, é interessante perceber de que maneira a elaboração de tal narrativa histórica favorece a instituição dos pedreiros livres. Em diversos momentos, a presença da maçonaria em território brasileiro foi questionada. Com a proclamação da República, por exemplo, a Igreja Católica perdeu o título de religião oficial do Estado e, para tentar reaver sua influência política, reforçou o combate à organização. O catolicismo oficial passou a apresentar a maçonaria como uma sociedade “estranha” à cultura brasileira, vinda de fora, representante do imperialismo e, logo, uma ameaça à soberania nacional. Mais tarde, com esses argumentos, Getúlio Vargas a colocaria na ilegalidade.
Diante de situações como essas, tornou-se fundamental para a maçonaria apresentar-se à sociedade brasileira como uma instituição que, ao contrário do que dizem seus opositores, mostra se presente há tempos em nosso território e em nossa cultura. Assim, a narrativa da Inconfidência como um movimento maçônico pode ser denominada de “'tradição inventada”, expressão cunhada por Eric Hobsbawm que indica a criação de um passado com o qual se busca estabelecer uma continuidade. Construir por meio de uma historiografia uma tradição na qual os maçons teriam feito parte do momento fundador da nação brasileira é, sem dúvida, uma maneira de assegurar sua presença no Brasil. Ao associar a imagem de Tiradentes à sua, essa ordem passa a ser lembrada como a defensora dos nobres valores carregados pelo herói nacional. Mais do que uma forma de defesa, a apropriação maçônica da simbologia da Inconfidência lhe dá legitimidade perante a sociedade. Por ora, a estratégia teve êxito na medida em que a insurreição de 1789 e a atuação maçônica encontram-se, ainda hoje, intimamente associadas no imaginário popular.
Autora: Françoise Jean de Oliveira Souza
Notas
A bandeira mineira - A origem da bandeira de Minas Gerais é mais uma prova, para os maçons, do envolvimento desta organização na Inconfidência. “Se ainda ao mais incrédulo dos incrédulos restasse um resquício de dúvida quanto à origem maçônica da Inconfidência Mineira, bastaria contemplar-lhe a bandeira”, afirma Tenório D'Albuquerque, em A bandeira maçônica dos inconfidentes. Utilizando como disfarce a ideia da Santíssima Trindade, o triângulo representaria, na verdade, a sagrada trindade da maçonaria: liberdade, igualdade e fraternidade. No interrogatório relatado nos autos da devassa, ao ser perguntado sobre o significado da bandeira, Tiradentes teria respondido “sagrada trindade” e não “santíssima”. Tal detalhe supostamente passou despercebido ao escrivão.
Discordância entre historiadores - A historiografia acadêmica encontra-se longe de um consenso acerca da participação ou não da maçonaria na Inconfidência. As hipóteses vão desde o papel central dos maçons na elaboração dos planos do levante até a negação total de sua influência na Conjuração.
Augusto de Lima Júnior ressalta o papel da maçonaria ao percebê-la como um importante elemento de ligação e comunicação dos inconfidentes com os grupos de apoio no Rio de Janeiro e na Europa. Em posição oposta está Lúcio José dos Santos, alegando que o fato de não haver nenhum vestígio da ação propriamente maçônica nos autos da devassa seria a maior prova da ausência dessa sociedade na Inconfidência. Também argumenta que, se a maçonaria possuísse prestígio suficiente a ponto de ser a idealizadora do movimento, ela teria tido forças para impedir a condenação de seus membros. Finalmente, a meio-termo entre as duas opiniões encontra-se Márcio Jardim, para quem a atuação maçônica teria sido importante, mas secundária: seu papel seria apenas o de aglutinar pessoas e idéias. O autor observa, ainda, como a maçonaria dos dias atuais se apropria da figura de Tiradentes, o que revelaria um desejo de mostrar poder acima do comum, causando lhe surpresa o fato de “boatos sobreviverem ao tempo e à evidência das provas contrárias”.
Fonte: https://opontodentrodocirculo.wordpress.com/2017/01/13/em-busca-de-uma-tra=
dicao-inventada/