sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

A SUBLIMAÇÃO

Morrer é passar de um modo de existência a outro, porque nada se perde. A ciência moderna concorda nesse ponto com a intuição primordial da espécie humana. A semente morre como tal, quando sua crosta se rompe e uma planta nasce de sua substância. O recipiendário, ele também, deveu morrer para as fraquezas profanas, nascendo para a vida iniciática. O nascimento é, para ele, o esforço pelo qual se libera daquilo que é inferior, a fim de poder lançar-se em direção ao céu da mais pura idealidade.
É em vista de sua regeneração espiritual que os heróis antigos desceram aos Infernos; mas não eram aí retidos, porque a força ascensional extraída das profundezas não tardava em transportá-los ao céu. O recipiendário, ele também, não se hospeda senão transitoriamente na matriz subterrânea onde se prepara seu renascimento. Ele não pode, todavia, sair de sua cela a não ser “nem nu nem vestido”, ou seja, abandonando uma parte de suas vestes. O uso prescreve, com efeito, colocar a nu o peito e o joelho esquerdo, assim como o braço direito. Convém, além do mais, descalçar o pé direito e colocá-lo numa alpargata, depois, o que é mais importante, vendar os olhos do recipiendário. Este não recebe nenhuma explicação enquanto as provas não forem sofridas; ele permanece desconcertado, entregue intencionalmente às suas conjecturas, aguardando a instrução iniciática que deve merecer.
O leitor adivinha que a região do coração é colocada a descoberto em alusão à absoluta sinceridade do recipiendário, do qual a manga direita da camisa é erguida em sinal de preparação para o trabalho. A nudez do joelho quer que, a isso se submetendo, ele entre diretamente em contado com o solo sagrado, que o pise, por sua vez, com o pé descalço. Mas por que o outro pé conserva-se calçado? É indispensável executar  mancando  os  primeiros passos que conduzem à iniciação?
Paira um mistério sobre o rito do pé descalço. Sem a perda de uma das sandálias, Jasão não teria empreendido a conquista do Tosão de Ouro. O israelita que se recusa a desposar a esposa de seu irmão deve percorrer a cidade com um só dos pés calçado. Eliphas Levi sugere que a preparação física do recipiendário lhe ensina a levar em conta a alternância das ações mágicas. A toda corrente positiva intencionalmente  acionada  corresponde uma contracorrente negativa oculta; quando o profano se lança na ação, ele negligencia, muito freqüentemente, a reação fatal que prevê o Iniciado. Há muito que meditar sobre essa matéria.
Mas o cerimonial iniciático não comporta pausas, prestando-se ao recolhimento; ele desenrola-se teatralmente,  um  programa  enigmático, desconcertante  à  primeira  vista.  O  recipiendário  deve resignar-se a não compreender imediatamente a significação do cenário que se desenrola em sua honra. Atém-se a se abandonar ao guia invisível que o faz sofrer as provas de olhos vendados.
Conduzido cegamente diante da porta do Templo, ele é convidado a aí bater. Antes de ser admitido, ele deve ser reconhecido como “nascido livre e de bons costumes”, ao mesmo tempo em que sinceramente desejoso de ver a luz.
Para entrar, ele se inclina profundamente, testemunhando seu respeito para com o mistério que ele ignora. Um orgulhoso não saberia penetrar senão como intruso no santuário da procura independente do verdadeiro; ele deve ser  humilde  para  instruir-se:  quanto  mais  consciência  temos  de  nossa ignorância, melhor realizamos as disposições favoráveis à nossa instrução.
O recipiendário não se curva, todavia, senão que para endireitar-se com a legítima altivez do homem livre. Ele nada vê, mas, forte em sua lealdade, é sem temor. Quando uma ponta de aço toca-lhe à altura do coração, ele pode acreditar-se  ameaçado  pela vingança dos iniciados, no caso de trair sua confiança. Na realidade, o rito faz apelo à sua sensibilidade; é ao coração que se endereça a Iniciação, mesmo intelectualmente: são as verdades intimamente sentidas que nos colocam no caminho da luz.
Antes de o recipiendário prosseguir, questões lhe são propostas. Elas não deveriam visar senão que a dirigir sua atenção sobre o esoterismo do cerimonial iniciático. Os símbolos destinam-se a fazer pensar; eles têm uma significação muito vasta e muito profunda para que possam ser substituídos por palavras. O que caracteriza o Iniciado é que os símbolos não são mudos para ele; ele sente, no mais profundo de si mesmo, aquilo que os símbolos se esforçam por dizer-lhe, primeiro confusamente, depois com uma nitidez crescente. Eles obrigam-no a adivinhar, a tirar de si mesmo um ensinamento que não é mendaz, como o é, muito facilmente, aquilo que traduzem as frases.
Advertido do caráter emblemático dos usos maçônicos, o recipiendário empreende sua primeira viagem em torno do quadrilongo traçado no meio da Loja. O espaço central delimitado em forma de retângulo figura uma espécie de Santo dos Santos da Maçonaria. O pé descalço parece autorizado a aí pousar ao longo da borda, à vista de uma santificação, tornando este pé sensível às influências terrestres, permitindo-lhe orientar-se  em  direção à região de onde provém a luz.
Esses detalhes merecem ser conhecidos, ainda que, na prática, se faça abstração de minúcias ritualísticas mais chamativas do que imediatamente instrutivas. As simplificações admitidas reduzem as peregrinações simbólicas a rápidas caminhadas, partindo do ocidente para o norte e reconduzindo do oriente para o meio-dia, a rota prescrita sendo aquela do Sol, guia daqueles que procuram a luz.
Quando o iniciado penetra o sentido misterioso dessas provas, lembra-se  das  florestas tenebrosas dos romances de cavalaria. Os monstros aí ameaçam o temerário que, vacilando a cada passo, deve vencer mil dificuldades para chegar aos campos ensolarados de seus sonhos. Para os maçons, a luz é contida no Ocidente pelos objetos que caem sob nossos sentidos. Partimos daí para nos dirigir ao Oriente, cuja claridade nos ajuda a compreender. Quanto mais o espírito está ávido de compreensão, mais se entrega às suposições casuais, às hipóteses falaciosas, caminhando assim através das trevas brumosas do setentrião. Chegado ao Oriente, vangloria-se de haver percebido a razão dos fenômenos ocidentais. Orgulhoso de sua filosofia, ele retorna ao Ocidente pelo caminho do meio-dia, que o conduz sobre uma planície queimada, onde o raciocínio se exerce sem  piedade, ambicioso de tudo explicar. Não escutando senão sua lógica, o raciocinador elabora um sistema que o satisfaz: isso equivale à ascensão simbólica a uma montanha, no cume da qual a vida espiritual estende-se sobre todo domínio terrestre... Satã não intervém senão que para tentar o filósofo, prometendo-lhe o império do mundo, mas o orgulho espiritual chama uma catástrofe. O vento da crítica eleva-se; ele não tarda em soprar como tempestade: o granizo se abate, a torrente ronca e turbilhões furiosos arrancam do solo o audacioso ascensionista. Projetado através do Ar, ele cai na planície das constatações objetivas, onde o recebem braços que amortizam sua queda.
Visto a rapidez da iniciação cerimonial, o ritual em uso nas Lojas renuncia sabiamente a toda instrução esotérica; tudo se limita a interpretações indicativas elementares relacionadas ao alcance moral das provas. Muitos maçons se atêm infelizmente às migalhas verbais que puderam recolher e, não refletindo mais adiante, param no texto que lhes foi lido:
Essa primeira viagem é o emblema da vida humana; o tumulto das paixões, o choque dos diversos interesses, a dificuldade dos empreendimentos, os obstáculos que multiplicam sob vossos passos as correntes que se empenham em vos prejudicar e sempre dispostas a vos desencorajar,  tudo  isso  está figurado  pela  desigualdade  do  caminho  que haveis de percorrer, assim como pelo ruído que se faz em torno de vós.
Vós  entrastes  numa  senda  difícil  e  eriçada  de  asperezas;  vós escalastes com esforço uma montanha do cume da qual seríeis precipitados num abismo, se um braço protetor não vos houvesse sustentado.
Isso significa que, no mundo, se nos damos freqüentemente muito trabalho para atingir uma posição que, finalmente, não reserva senão ruína e decepção.
Para o iniciável que retorna das profundezas onde o espírito se encontrou em presença  dele mesmo, não está aí senão um início de perseverantes meditações. Por reação equilibrante, a descida concentradora levada ao extremo suscita uma equivalente expansão ascendente. Aquele que desceu aos infernos obterá escalar o céu; ao sair de si, ele vai distender-se até a contemplação do Todo exterior, mas a vertigem mental provoca então a queda sobre o terreno da objetividade.
Oswald Wirth — Os Mistérios da Arte Real — Ritual do Adepto.

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