segunda-feira, 14 de outubro de 2013

OS METAIS

Para tornar-se Franco-Maçom é preciso começar por despojar-se de seus metais. Aplicada em todas as Lojas, esta regra parece remontar a uma prodigiosa antiguidade, pois que, num poema babilônico, — que já passava por  muito  antigo  há  cinco  mil  anos,  —  a deusa  Ishtar  nos  é  mostrada constrangida  a depositar,  sucessivamente,  seus  adornos, a  fim  de  poder franquear as sete muralhas do mundo infernal e comparecer nua perante sua irmã, a temível rainha da morada dos mortos.
Que  significa  a  renúncia  aos  metais?  Vê-se  aí  o  símbolo  de  um empobrecimento voluntário, porque se diz que os ricos não entram no Reino de Deus, o que, filosoficamente, se aplica aos afortunados da inteligência, satisfeitos daquilo que possuem e muito apegados aos seus bens para deles se desfazerem e trabalharem na aquisição de riquezas de valor mais efetivo. O metal brilha, ele deslumbra e presta-se às trocas, de onde o seu poder de(1) compra que se estende até as consciências. É assim que o ouro e a prata fazem ofício de agentes de corrupção, enquanto o bronze e o ferro tornaram mais  mortais  as  lutas  entre os  seres  humanos.  É  surpreendente,  nessas condições, que os antigos moralistas hajam lamentado saudosamente a idade anterior ao uso dos metais? Eles atribuíram aos metais todas as perversões, de forma que o retorno ao estado de candura, de inocência e de pureza fosse figurado em sua linguagem alegórica por uma renúncia aos metais.
O metal lembra, além disso, aquilo que é artificial e que não pertence à natureza original do homem; ele é o símbolo da civilização que faz pagar caro aos humanos as vantagens que ela proporciona. O civilizado ignora aquilo que perdeu; é preciso, todavia, que ele saiba disso, para reconquistar as virtudes primitivas. Ele nem sempre é tornado melhor pela instrução, e numerosos vícios, ignorados pelo selvagem, são nele desenvolvidos. Uma associação visando a melhora dos indivíduos e, através deles, a melhora da sociedade humana,  deve  esforçar-se  para  remediar  as  perversões  consecutivas  aos progressos das artes e das ciências.
Não se trata, todavia, de uma  reintegração  tal como entendem certas escolas. A conquista de um paraíso, análogo àquele do qual foi expulsa a humanidade primitiva, não é uma perspectiva do amanhã; não pode se tratar senão que do despertar de faculdades naturais, das quais a vida civilizada não exige  mais o emprego. A perda dessas faculdades nos  coloca  em inferioridade, quando somos chamados a compreender outra coisa além de frases.  Ora,  como  a  sabedoria  fundamental  do  gênero  humano  é independente dos modos  de  expressão  de  nossa  época,  é  preciso,  para iniciar-se  nos  mistérios desta sabedoria, começar  por  uma  renúncia  aos processos modernos, que nos levam a brincar com as palavras de cujo valor nós abusamos.
Os homens pensaram antes de possuir uma linguagem filosófica, antes de adotarem termos pesquisados, adaptando-se  às concepções abstratas. Desde que sua inteligência despertou espontaneamente, eles foram levados a refletir sobre o mistério das coisas. Aquilo que lhes vem ao espírito, fora de toda sugestão anterior, merece ser procurado por nós, que aspiramos nos afastar dos erros acumulados, em meio aos quais nos debatemos. O primitivo não era um estúpido e, se nós remontarmos à fonte de sua inspiração, não poderemos senão admirar sua instintiva lucidez. É preciso que nos tornemos lúcidos por nossa vez, colocando-nos em condições nas quais, afastados de toda experiência convencional,  nosso  espírito reencontre  sua original impressionabilidade receptiva.
Os simples enganam-se menos, em sua ignorância cândida, que os soberbos em seu saber pretensioso. Descartes, em seu método, prescreve ao filósofo começar esquecendo-se de tudo aquilo que ele sabe, a fim de reduzir seu intelecto à tabula rasa. É uma ignorância querida que se torna o começo do verdadeiro conhecimento; o despojamento dos metais faz alusão a esse empobrecimento intencional, graças ao qual o espírito, desembaraçado de todos os falsos bens, prepara-se para a aquisição de incontestáveis riquezas.
Um símbolo não vale senão por aquilo que ele significa; não é, pois, de tomar-se  como trágica  uma prescrição  tradicional.  O  gesto  ritualístico  é apenas  a  imagem  de  uma operação  mental  que unicamente  importa  na realidade. Infelizmente, a materialidade do rito é suficiente para a maioria dos Franco-Maçons que, não havendo jamais sonhado em despojar-se de seus metais em espírito e verdade, excluem-se a si mesmos da efetiva Iniciação maçônica.
Não  há  lugar,  no  começo  da  Iniciação,  para  ver  os  metais  sob  os múltiplos aspectos de seu simbolismo. O programa iniciático é gradual. O estudo  dos  números prossegue normalmente, partindo da Unidade para chegar ao Setenário após uma preparação. Ora, os Metais-Planetas figuram as causas segundas, coordenadoras do caos. O Companheiro penetra-se das leis de sua ação para elevar-se ao Mestrado; quanto ao recipiendário, ele não irá além daquilo que sugere a deposição dos metais, vistos como fazendo obstáculo ao exercício das faculdades intelectuais que o homem possuiu em estado de natureza. Estas faculdades se manifestam por uma acuidade de percepção que fazia o primitivo adivinhar aquilo que o civilizado não chega a conceber. Tudo é símbolo para o espírito ingênuo posto em presença de fenômenos naturais: a criança possui o sentido de uma poesia que o adulto erra em desdenhar, porque a prosa está longe de reinar sozinha no universo. A revelação mais antiga e mais sagrada liga-se a idéias que nascem delas mesmas  em  intelecto  virginal.  Retornemos  ao  frescor  original  de  nossas impressões, se aspiramos a nos  iniciar. Initium significa  começo; saibamos, pois, recomeçar para entrar na boa via.
Oswald Wirth — Os Mistérios da Arte Real — Ritual do Adepto.

(1)Ver na Coleção Symbolisme nossa interpretação do Poema de Ishtar, tal qual nos
foi conservado em seu texto assírio. (Nota do Autor).

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