domingo, 20 de outubro de 2013

A PROVA DO FOGO

Ao sair da água que purifica exteriormente, o místico aborda uma margem de árida solidão. Separado dos vivos pelo discernimento de suas ilusões e de seus erros, ele pode, em sua lucidez que não é ingênua de nada, ater-se ao seu desencanto erigido em sistema. Desencorajado dele mesmo, ele desencoraja então outrem e, cativo do rio que corre em ondas cambiantes, ele pára no caminho de sua iniciação.
Mas, se estiver destinado a prosseguir, o deserto exercerá sobre ele sua tração; ele aí adentrará sem recuar perante um sol tornado cada vez mais ardente sob seus passos. O calor que o invade pode torná-lo saudoso da frescura reconfortante do rio ao qual ele voltou as costas. Ele é livre para voltar atrás, sobretudo quando surgem chamas do solo e ameaçam cercá-lo. Se hesitar, será muito tarde; um círculo de fogo o envolverá, e ele mesmo terá decidido sua sorte: terá desejado ser queimado.
Desta vez, não será mais simplesmente em seu exterior e em seu ambiente psíquico que ele será purificado; o fogo espiritual que o vai penetrar destruirá nele todos os germes de mesquinharia e de inferioridade. A purificação integral acaba a transmutação do recipiendário: aquilo que era profano  deve, doravante, permanecer morto nele; e ei-lo regenerado integralmente no sentido rosacrucianista: Igni Natura Renovatur Integra. Tendo sido purificado pela Terra, pelo Ar, e pela Água, o místico é renovado pelo Fogo.
Ao batismo pela Água sucede aquele do Fogo ou do Espírito Santo. Ora, como Shiva, o Fogo iniciático não mata senão que para vivificar. Ele é o universal animador e distribui, a esse título, o calor ativo do Amor. Se a prova do Fogo não acender no coração um ardor generoso que invada de um modo permanente toda a personalidade, é porque não foi senão fictamente sofrida. Uma faísca do universal  Fogo Sagrado dorme em cada um de nós; ela nos anima à vista da tarefa que nos incumbe, mas não acende muito freqüentemente em nossa lanterna senão que uma pobre chama vacilante, iluminando com parcimônia o  caminho de nossa honesta existência. Para comportar-se como simples homem de bem não é indispensável, com efeito, afrontar as provas da Iniciação; mas quem ambiciona trabalhar superiormente e  ultrapassar o dever banal deve fazer prova de nobreza de alma e de corajosa abnegação. O indivíduo não é nada por ele mesmo, senão um começo daquilo que pode se  tornar. É livre para permanecer inerte, adormecido, frio, inativo. Se não quiser vibrar, estará à vontade para retirar-se da vida agitada e suicidar-se pela abstenção. Eis aí um ideal que é preconizado no Oriente; esse não é aquele da Iniciação nos mistérios da Arte Real. A Realeza proposta é aquela do espírito ativo, eternamente ativo. Para participar disso, é indispensável querer o bem com um fervor que faça o indivíduo entrar em vibração com o ritmo criador. É preciso que o homem se divinize, querendo e amando como um Deus, para que efetivamente ele seja colocado na posse do Fogo Sagrado.
As provas maçônicas, tais como elas são colocadas em cena no seio das Lojas, podem parecer ridículas aos profanos, como todos os atos simbólicos vistos em sua exterioridade. Por pobre que possa ser sua dramatização material, elas aludem, em seu esoterismo, aos mistérios mais formidáveis da tradição iniciática. Quem as sofre  em espírito e em verdade torna-se um real Iniciado. Quanto àquele que as evita, ele permanece profano, a despeito de todos os conhecimentos que possa ostentar, a despeito mesmo dos milagres que saiba realizar. Paulo exprime-se como Iniciado, quando escreve aos Coríntios:
Ainda que eu falasse todas as línguas dos homens e mesmo aquelas
dos anjos, se eu não tivesse a caridade, seria como o bronze que soa ou
como o címbalo que retine.
E ainda que eu tivesse o dom da profecia, que eu conhecesse todos os
mistérios e possuísse toda sorte de ciência, que eu tivesse toda a fé que se
possa ter de maneira tal que transportasse as montanhas, se eu não tivesse a
caridade, nada seria.
E ainda que eu distribuísse todos os meus bens para o sustento dos
pobres, e ainda que entregasse meu corpo para ser queimado, e não tivesse
a caridade, nada disso me aproveitaria.
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Quando tudo perece, três coisas permanecem: a fé, a esperança e a
caridade; mas a mais excelsa dessas virtudes é a caridade.
Na  ordem  profana, estimáveis resultados podem ser obtidos com sangue-frio, através da aplicação judiciosa das forças disponíveis; é o caso das obras de detalhe às  quais  se entregam os homens. Mas existe uma Grande Obra eterna e global que não é realizável senão pelo Amor. É preciso amar para trabalhar divinamente; para criar, coordenar do caos e transmutar o mal em bem. Quem não arde verdadeiramente de afeição por outrem não é senão um miserável obreiro, para sempre incapaz de operar o menor milagre da Arte. Se ele não souber amar, não realizará senão uma pobre tarefa mercenária; ele não se elevará acima da profissão, senão amando o trabalho para a ele entregar-se com a abnegação do amor. Se assim é no domínio das múltiplas ocupações humanas, — porque todas se transformam desde que um nobre sentimento as inspire, — que dizer do Trabalho espiritual superior ao qual se consagram os Iniciados?
Na qualidade de Franco-Maçons, os purificados efetivos espiritualizam a Arte de construir, adaptando, à Grande Obra construtiva de uma Humanidade melhor, as regras tradicionais da antiga arquitetura sagrada. Ora, as catedrais, construídas pelos predecessores dos adeptos atuais do esquadro e do compasso, são obras de amor, onde cada pedra foi talhada com o mesmo fervor afetuoso, para edificar o Templo humanitário, cujos construtores são eles mesmos os materiais. Se o Amor verdadeiro, intenso e profundo não for nosso estimulante e nosso guia, nós nos debateremos em pura perda.
Oswald Wirth — Os Mistérios da Arte Real — Ritual do Adepto.

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