terça-feira, 12 de julho de 2011

Vida única e reencarnação

Ricardo Lindemann (Ex-Presidente Nacional da Sociedade Teosófica no Brasil)
Aparentemente, a idéia de viver somente uma vez parece opor-se à da reencarnação, mas pode-se tentar demonstrar que, na verdade, não existe tal incompatibilidade. A oposição lógica seria ainda mais óbvia entre os conceitos de “Encarnação Única e Reencarnação”, como era o nome original deste trabalho, quando foi apresentado na Universidade. Porém, na adaptação feita para esta revista de um país tradicionalmente cristão, em que o termo encarnação em algumas Igrejas só se aplica ao caso do Senhor Cristo, tal título talvez criasse uma complexidade ainda maior, que aqui será evitada.
Por outro lado, seria, sem dúvida, mais abrangente e interessante tratar sobre o tema “Vida Única e Reencarnação”, enfocando até mesmo a hipótese da inexistência da alma humana (D) ou da sua possível mortalidade, ao invés de partir desde o início da cômoda hipótese de que a alma humana (D) existe, é imortal e encarna-se no corpo físico (E4) para manifestar-se nesse mundo material. Contudo, principiar por um tal qestionamento sobre a imortalidade da alma (D) tornaria esse trabalho muito mais extenso do que a oportunidade permite. Porém, talvez umas poucas palavrinhas sobre tal enfoque sejam agora oportunas.
Foi o Dr. Viktor E. Frankl, criador da Logoterapia ou 3ª Escola Psiquiátrica de Viena, quem considerou que o homem é capaz de suicidar-se, caso não encontre um sentido para viver, e também é capaz de dar a sua vida por uma causa, até de oferecer-se ao martírio, caso encontre nela o sentido de sua vida, e isso – disse ele – um animal não é capaz de fazer. Eis um forte indicativo do componente espiritual do homem que esse psiquiatra pôde investigar enquanto era prisioneiro de quatro campos de concentração nazistas, durante a II Guerra Mundial.
Os homens, devido a uma sensação de vazio espiritual ou existencial, são também capazes de levar o corpo (E4) a todos os excessos, prejudicando assim a sua própria saúde. Poderia um ser puramente material entrar em contradição com a vontade natural de seu próprio corpo (E4), que é a saúde? Um animal dificilmente poderia.
Temos assim fortes indícios de que há pelo menos um componente espiritual no ser humano, geralmente chamado de alma (D), que o diferenciaria do animal ou do puramente material. Aliás, sabe-se hoje que E = mc2, ou seja, que o puramente material não existe, visto que a ciência descobriu que a matéria e a energia são mutuamente conversíveis, sendo a primeira uma manifestação ou forma “condensada” da segunda.
A própria telepatia, exaustivamente comprovada pelos parapsicólogos, indica que o pensamento pode ser percebido a distância por uma pessoa sensível sem nenhum meio material de transmissão, ou seja, indica que o pensamento sobrevive fora do cérebro. Então, por que não poderia a alma (D) sobreviver sem o corpo (E4)?
Seja como for, pelo exposto inicialmente, teremos que iniciar este trabalho partindo do ensinamento universalmente aceito por todas as religiões de que a alma humana (D) é imortal, ou, melhor dizendo, de que há um princípio imortal no homem (Na verdade, embora o Budismo do Norte seja reencarnacionista, o caso do Budismo do Sul parece ser uma variação excepcional, porque considera o eu separado ou alma (D) como uma ilusão, comparando a vida com um fluxo de contínua mudança onde nada é permanente, embora acredite no karma como uma sucessão de causas e efeitos que afetará uma vida futura. Assim, o renascimento não tem o sentido de imortalidade, mas apenas o de uma simples continuidade dentro da mutabilidade. Dessa forma, o Budismo do Sul entende que, quando a chama de uma vela acende uma outra vela, nada transmigrou).
Esse princípio se manifestaria nesse mundo físico ligando-se a um corpo carnal (E4) – eis o fenômeno da encarnação, também universalmente aceito por todas as religiões do mundo, com algumas variações (No caso do Cristianismo Católico Romano, depois da decisão do Concílio Constantinopla II em 553 d.C., o termo encarnação se aplica somente ao Senhor Cristo, como encarnação do Verbo Divino. Ele é o Filho primogênito da criação divina, tendo se originado no início dos tempos. Todas as outras almas seriam criadas por Deus depois que o seu respectivo corpo fosse concebido pelos homens na Terra. Tal é a conseqüência do anátema contrário à preexistência da alma do Padre Orígenes, decretada naquele concílio. O Papa Vigílio preferiu nem comparecer, alegando estar doente, pois o Concílio foi convocado pelo Imperador Justiniano I, num exemplo clássico de cesaropapismo: regime em que os Césares de Roma pretendiam exercer controle sobre o poder espiritual da Igreja [maiores detalhes podem ser encontrados em A Tradição-Sabedoria (vide nota 1) ou em DAVIS, Leo Donald. S.J. The First Ecumenical Councils (325-787); Their History and Theology. Collegeville, USA, The Liturgical Press, 1990. p. 207-56.4).
Todavia, podemos encontrar, em um estudo de religiões comparadas pelo menos duas doutrinas aparentemente inconciliáveis: a de que a alma (D) só se encarnaria ou estaria encarnada num corpo (E4) uma única vez neste mundo material, e a de que a alma (D) se reencarnaria ciclicamente, ou muitas e muitas vezes nesse mundo físico.
A primeira, usualmente associada aos aspectos exotéricos do Judaísmo, Cristianismo e Islamismo, em síntese considera que a alma (D) encarnada está aqui só de passagem, voltando à sua verdadeira morada eterna após a morte do corpo (E4), não se preocupando em explicar qual o objetivo dessa passagem por este mundo e nem por que essa passagem pode durar setenta anos ou mesmo um século para alguns, enquanto que outras almas só ficam alguns dias ou mesmo minutos encarnadas neste mundo.
A segunda, usualmente associada ao hinduísmo, budismo, espiritismo, às religiões iniciáticas dos mistérios egípcios, gregos, etc., e às filosofias pitagórica, platônica, etc., em síntese considera que a alma (D) tem algo a aprender neste mundo e terá que reencarnar-se em novos corpos (E1, E2, E3, E4) até que aprenda o que veio aprender, sendo que as circunstâncias das vidas seguintes serão efeito da conduta nas anteriores. Somente depois de passar por essa aprendizagem na escola das vidas corpóreas e conquistar a sabedoria correspondente é que a alma (D) desligar-se-ia dos laços do desejo por experiências mundanas que a trazem de volta para novas encarnações. Somente então ela cumpriu sua missão ou tarefa de aprendizagem neste mundo e está livre para voltar definitivamente para sua verdadeira pátria espiritual.
Temos, pois, duas doutrinas aparentemente inconciliáveis. Analisemos, porém, mais profundamente cada uma delas.
Tomemos, como exemplo mais próximo de doutrina da vida única, os dogmas e artigos de fé atuais da Igreja Católica Apostólica Romana. Segundo essa doutrina, conseqüência do anátema contrário à preexistência da alma decretado em 553 d.C., no Concílio Constantinopla II, a alma (D) é criada por Deus no momento da concepção, estando desde então ligada ao óvulo fecundado que gerará o seu futuro corpo (E4), desligando-se deste somente no momento da morte. Então, ela (D) seria submetida a um julgamento cujo resultado seria ou a penalidade de um sofrimento eterno no inferno ou a bem-aventurança eterna no céu, precedida de um eventual e algo penoso período transitório de purificação no purgatório. Esse período eventual de purgação seria algo breve, mesmo porque, do ponto de vista dimensional, qualquer período de tempo será breve perante a eternidade... Obviamente, visto que segundo essa doutrina os atos finitos e temporais geram resultados infinitos ou eternos, a alma não terá mais oportunidade de voltar para essa Terra e reencarnar-se. Essa desproporcionalidade entre causa e efeito é inerente a todas as religiões de vida única que tenham o inferno e o céu como resultados eternos; porém, no caso cristão citado existe um agravante: não é a conduta da vida da pessoa que determina o resultado do julgamento, mas apenas a crença no Salvador no instante da morte. Se naquele instante crítico – a última oportunidade de arrependimento – a fé da pessoa no Salvador vacilar, ela não irá para o céu, independentemente de quão virtuosa ela tenha sido, porque, para esses cristãos que seguem a interpretação tradicional, o Salvador não é interpretado como um princípio onipresente ou um Cristo Interno (Como dizia São Paulo: “Cristo em vós, a esperança de glória” (Colossenses 1:27), ou como disse o próprio Cristo: “Naquele dia sabereis que Eu estou em meu Pai, e vós em Mim, e Eu em vós” (João 14:20) (D2), mas uma pessoa externa que é o caminho, a verdade e a vida, e ninguém pode chegar ao céu sem aceita-o como o seu Salvador. Deixa, assim, de ser uma questão de justiça divina para transformar-se numa questão de relação pessoal. Nesse caso, então, a deformação dimensional atinge o máximo, pois a eternidade é decidida em um único instante – o da morte! Talvez seja por isso que a civilização cristã é uma das que mais teme a morte: tudo é decidido ali. Já entre os hindus, que são reencarnacionistas, é costume festejar a morte com alegria, sendo considerado uma ofensa ao morto chorar pela sua perda, porque a morte é o dia da libertação: eis o contraste.
Por outro lado, a doutrina da reencarnação tende a gerar certa apatia, quando mal compreendida, porque tendo a sua disposição tantas vidas quantas forem necessárias pode haver uma falta de sentido de urgência, uma tendência ao adiamento de esforços, uma tendência a certa inércia mais comum no oriente, se formos compará-la com a pressa do ritmo ocidental de viver. Aliás isso é coerente, pois para o cristão a vida é uma só: o que não foi feito nesta vida nunca mais será feito, logo corre-se desesperadamente atrás do tempo, que torna-se irrecuperável. Eis uma das causas do imediatismo ocidental: a doutrina da vida única tende a gerar impaciência, caindo-se num “agora ou nunca”. Logo, sob um ponto de vista caricaturesco, o reencarnacionista pode parecer um apático; e o não-reencarnacionista, um desesperado. Há pois vantagens e desvantagens em ambas as doutrinas, quando tomadas superficialmente.
A doutrina da reencarnação, por sua vez, tem meandros que o observador superficial geralmente desconhece. Por exemplo, se o indivíduo troca de corpo (E4) de uma encarnação para a outra, então é óbvio que ele também trocou de cérebro. Assim, a memória cerebral é afetada, há uma descontinuidade, somente a alma imortal (D3) lembraria o seu passado e, portanto, é usual o esquecimento total das vidas anteriores em nível de consciência cerebral de vigília. A esse esquecimento do passado, Platão refere parabolicamente em A República, quando a alma (D), antes de nascer, bebe das águas do Rio Lethe – o rio do esquecimento.
Surge então uma questão fundamental no reencarnacionismo: o que é que se encarna? Platão, por exemplo, divide a alma em três partes, segundo a República, que são apetitiva (E2) (algo como um resquício vegetal que busca o prazer e foge da dor), a irascível (E1) (algo como um resquício animal que busca vencer pela força, sede da busca de poder, fama e auto-afirmação) e a inteligível (D3) (a alma humana propriamente dita, sede da razão e da busca da verdade). Os sistemas reencarnacionistas falam de segunda e mesmo terceira morte, correspondendo à morte de certas partes mortais (E1+E2) da alma ou psique. Assim, por exemplo, após um período de purgação, proporcional à intensidade dos apetites e desejos inferiores do indivíduo, ocorreria a morte da alma apetitiva ou lunar (E2) (como às vezes é chamada nas tradições de mistérios), libertando, assim, o indivíduo do purgatório.
Platão, que era iniciado nos Mistérios de Elêusis, conhecia esses ensinamentos sobre os estados post-mortem, conforme podemos ver no Fédon: “Todo aquele que atinja o Hades (o mundo dos mortos, N. R. L.) como profano e sem ter sido iniciado, terá como lugar de destinação o Lodaçal, enquanto que aquele que houver sido purificado e iniciado orará, uma vez lá chegado, com os deuses. É que, como vês, segundo a expressão dos iniciados nos mistérios, ‘numerosos são os portadores de tirso, mas poucos os Bacantes’ (Alusão aos mistérios em que havia cerimônias de purificação e graus de consagração: o grau de Bacante é o superior, enquanto que os portadores de tirso constituem o grau inferior. ). Ora, a meu ver, estes últimos não são outros senão os de quem a Filosofia, no sentido correto do termo, constitui a ocupação” (PLATÃO. Diálogos: Fédon. Rio de Janeiro, Tecnoprint, s.d. p. 98). Podemos, assim, ver como os ensinamentos dos mistérios influenciaram Platão, a ponto de considerar que a ocupação do verdadeiro filósofo é preparar-se para a morte.
Os Mistérios comparavam os estados post-mortem com o estado de sonho, a morte com o dormir, porque, para eles, a alma se desprendia parcialmente do corpo enquanto este dormia. Assim como podemos ter pesadelos ou sonhos “coloridos” ao dormir, dependendo se nosso dia foi perturbado ou harmônico, assim também os estados post-mortem eram vistos como uma continuação mais intensa, porque livre da prisão do corpo (E4), dos estados psicológicos de nossa vida, referentes aos nossos hábitos físicos, emocionais e mentais.
O Sr. C.W. Leadbeater, maçom estudioso dessas tradições iniciáticas antigas, refere-se assim aos Mistérios Gregos:
“Os mitos da religião exotérica da nação eram tomados e estudados nos Mistérios Eleusianos tal qual nos Mistérios do Egito. Entre os relacionados com a vida póstuma se achava o de tântalo, que fora condenado a sofrer perpétua sede no Hades. A água o rodeava por todos os lados, mas refluía dele toda vez que tentava bebê-la; sobre sua cabeça pendiam galhos de frutas, que se contraíam quando ele estendia a mão para apanhálas. Isto era interpretado no sentido de que quem morre cheio de desejos sensuais de qualquer espécie, depois da morte se sente ainda cheio de desejos, mas impossibilitado de satisfazê-los.
“Outro conto é o de Sísifo, condenado a empurrar eternamente para o cimo de uma montanha um enorme bloco de pedra mármore, que tão logo alcançava o topo rolava de novo montanha abaixo. Isso representa a condição após a morte de um homem cheio de ambição pessoal, que passou sua vida a traçar planos com fins egoístas. No outro mundo continua traçando e executando planos, mas sempre descobre, no momento de completá-los, que não passaram de um sonho.” (LEADBEATER, C.W. Pequena História da Maçonaria. São Paulo, Pensamento, 1978. p. 11).
Platão chega a referir, em A República, que a alma sentiria os efeitos desses estados psicológicos de maneira dez vezes mais intensa (PLATÃO. Diálogos; A República. Rio de Janeiro, Tecnoprint, s.d. p. 386) do que quando em vida. Isso é coerente com o seu pensamento, visto que para ele o corpo (E4) era o sepulcro ou cárcere da alma (D). Assim, sem o corpo (E4), a alma (E2+E1+D3) estaria muito mais livre para sentir. Aliás, é interessante notar o fato de que os estados de medo ou felicidade, que sentimos quando temos pesadelos ou sonhamos, podem atingir intensidades muito maiores do que quando estamos acordados, a ponto de ficarmos felizes quando acordamos de um pesadelo, e de não querermos acordar de um sonho “colorido”, mas então o despertador toca... e somos obrigados a voltar para esse mundo pobre de intensidade.
Após essa segunda morte, a morte da alma apetitiva (E2) ou lunar, a consciência do indivíduo ficaria focada no princípio da mente pessoal ou concreta, sede do eu pessoal, alma irascível (E1) ou arrogante. Esta “toma o partido do que lhe parece ser justo” (ibidem, p. 161), sendo por isso “aliada” (ibidem, p. 163.) do princípio racional ou alma inteligível, que é a alma imortal do homem. Nessa condição a alma irascível (E1), já desligada da apetitiva (E2), sente intensamente os ideais pessoais que em vida não conseguiu preencher, correspondendo isso a um intenso sonho “colorido”, ou seja, os Campos Elíseos dos gregos, o Céu dos cristãos e zoroastrianos, o Sukhávati dos budistas, o Svarga dos hindus.
Segundo as tradições de Mistérios, esses estados são necessários para produzir uma espécie de “digestão” das experiências da última vida de modo a chegar às suas essências que ficarão depositadas na alma imortal ou inteligível como “tesouros” no céu” (BÍBLIA Sagrada. Mateus 6:20). É somente a essência superior, o aroma das experiências úteis, que pode nutrir a alma imortal (D3). Somente essa essência da personalidade (E) que viveu pode eternizar-se na alma imortal (D3) depois da terceira e última morte: a morte da alma irascível (E1) ou mente concreta. Então essa essência acumula-se na alma imortal (D3) como um nutriente que é retirado do alimento. As partes não nutritivas do alimento são eliminadas no processo da purgação.
Dessa forma, o mal não pode macular a alma imortal (D), mas uma vida sem o bem deixa-a vazia e fraca: fica com fome. Somente a essência espiritual das experiências pode nutrir a alma, mas o mal, como consideravam os neoplatônicos, é apenas a ausência do bem, não tendo fundamento em si mesmo, porque é finito e transitório. Somente o bem pode eternizar-se de fato.
Enquanto a alma imortal não alimentou-se suficientemente de inteligência espiritual (D3) ou sabedoria, amor espiritual (D2) e vontade espiritual (D1), conforme são classificados nos Mistérios e Hermetismo egípcios e na Teosofia oriunda de Alexandria os três princípios da alma imortal ou tríade superior (D), ela continua com a sede de experiência do mundo físico, que os hindus chamam Trishná e os budistas Tanhá. Seria essa sede, que em verdade é uma vontade da alma (D) de nutrir-se para crescer, que traria a alma (D) de novo para uma nova encarnação. Somente quando essa sede espiritual fosse saciada a alma (D) estaria livre, isso seria Mukti ou libertação, Nirvana ou não-ligadura ou extinção das paixões. À extinção da sede espiritual, existe uma correspondente nas escrituras cristãs:
“Qualquer que beber dessa água [a dos desejos da personalidade mortal (E)?] tornará a ter sede; mas aquele que beber da água que eu lhe der [a essência nutritiva espiritual?] nunca mais terá sede, pois a água que eu lhe der será nele uma fonte d’água brotando para a vida eterna [na alma espiritual (D)?].” (ibidem, João 4:13-1413 )
Isso corresponderia, na visão reencarnacionista, ao desenvolvimento pleno ou perfeito dos três princípios da tríade superior (D), que cresceria gradualmente a partir das experiências obtidas pelo quaternário inferior (E), como nos Mistérios se denominava aos princípios mortais do homem: a mente concreta (E1, alma irascível), as sensações e desejos emocionais (E2, alma apetitiva), a vitalidade ou corpo vital (E3, o pranamayakosha dos hindus, o ka dos egípcios, o eidolon dos Mistérios Gregos) e o corpo físico (E4). “Dessa forma, a alma (D3) só acumularia, das diversas experiências de cada vida terrena, a essência útil destas, conduzindo, gradualmente, o homem da inteligência à Onisciência, do amor a todos à Onipresença, e da vontade à Onipotência, culminando assim numa perfeição humana, manifestação do arquétipo divino, tal qual um Cristo ou Buda. Nesse sentido, o homem seria potencialmente um deus. Temos então o quaternário mortal (E) que, com suas experiências, nutre a tríade imortal (D) que cresce na direção da unidade divina. Os egípcios representavam isso na pirâmide de base terrestre quadrada, donde se elevavam os lados triangulares em busca do princípio uno – o vértice que aponta para o céu.” ((LINDEMANN, Ricardo. O Grande Marinheiro. IN Caderno Especial ao ensejo do I Encontro Sul-Brasileiro de Professores de Língua Portuguesa. Porto Alegre, Nepla-UFRGS, 1986. p. 27-8).
“Até que todos nós cheguemos... a homem perfeito, à medida completa da estatura de Cristo” (BÍBLIA Sagrada. Efésios 4:13)– essas são palavras do apóstolo Paulo! E Cristo teria dito: “Não está escrito na vossa escritura: ‘Eu disse: Vós sois deuses’?” (ibidem, João 10:34). “Sede, pois, perfeitos, assim como vosso Pai, que está nos céus, é perfeito.” (ibidem, Mateus 5:48).
Veremos assim que não há real incompatibilidade entre a doutrina da vida única e a da reencarnação, pois se por alma entendermos a alma pessoal (E1+E2) [ou as almas irascível (E1) e apetitiva (E2) de Platão] enquanto parte componente do quaternário mortal (E), cujos quatro princípios (E1+E2+E3+E4) são mortais e substituídos a cada reencarnação, então é correto afirmar que vida é uma só, que a alma (E1+E2) surge ou é criada no momento da concepção, porque só então os seus quatro princípios (E1+E2+E3+E4) estão manifestos. Também é verdade que a alma pessoal (E1+E2) pode eternizar-se, em essência, no céu, assimilada pela tríade imortal (D), ou pode excepcionalmente dissolver-se sem deixar vestígio no assim chamado inferno, caso nenhuma essência espiritual útil possa ser extraída do quaternário (E) no “processo digestivo” post-mortem. Existiria também o caso intermediário mais comum, em que parte (E2) da alma pessoal (E1+E2) seria “purgada” pelo “processo digestivo” do purgatório, enquanto a essência últil das experiências daquela vida se eternizariam ao ser assimilidas pela tríade imortal (D).
Por outro lado, se por alma entendemos a tríade imortal (D), então também é correto afirmar que a alma (D) se reencarna, embora apenas uma parte dela se projete em cada novo quaternário mortal (E), e que a alma cresce ao logo de diversas vidas, acumulando a essência das experiências assimiladas, até atingir a plenitude de suas potencialidades divinas de modo a cessar para sempre a sede por novas experiências no mundo do transitório, que a fazia reencarnar-se ciclicamente. Só então o homem atinge “a medida completa da estatura de Cristo.” (ibidem, Efésios 4:13).
É, contudo, importante notar que, por pelo menos cinco séculos, as duas doutrinas, a da vida única e a da reencarnação, conviveram livremente na história da Igreja, até a decisão do Concílio Constantinopla II em 553 d.C. Isso talvez seja uma das evidências de que elas não são necessariamente incompatíveis ou mutuamente excludentes.
É evidente, porém, que os judeus, principalmente os cabalistas, também conheciam a doutrina da reencarnação, caso contrário não acreditariam que Jesus seria a reencarnação de Elias ou Jeremias (cfe. Ma-teus 16:13-14; Marcos 8:27-28 e Lucas 9:18-19), ou que o profeta Elias voltaria (cfe. Malaquias 4:5), profecia que o próprio Jesus confirmou dizendo: “Em verdade Elias virá primeiro e restaurará todas as coisas; mas digo-vos que Elias já veio, e não o conheceram...” (ibidem, Mateus 17:11-12) e falando de João Batista disse: “Porque todos os profetas e a lei profetizaram até João. E, se quereis dar crédito, é este o Elias que havia de vir. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça.” (ibidem, Mateus 11:13-15).
Nota:
Esta é uma adaptação feita para a Revista TheoSophia de um trabalho intitulado Encarnação Única e Reencarnação, apresentado na Faculdade de Filosofia da UFRGS como conclusão da cadeira de Filosofia da Religião I (HUM 136U) em 1987. Para facilitar a compreensão dos irmãos teósofos, mais acostumados com outra nomenclatura, acrescentaremos, ao longo do texto, depois de cada veículo da consciência, o mesmo código alfanumérico que se encontra na página 41 nossa obra A Tradição-Sabedoria 3ª ed. rev. ampl. (Brasília, Ed. Teosófica, 2003), a saber: INDIVIDUALIDADE (D): Veículo Átmico (D1); Veículo Búdico (D2); Corpo Causal (D3); PERSONALIDADE (E): Corpo Mental (E1); Corpo Astral (E2); Duplo Etérico (E3); Corpo Físico (E4).
Extraído da Revista TheoShofia - abril/maio/junho - Editorial.

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