segunda-feira, 10 de outubro de 2016

NO OLHO DA TEMPESTADE


No primeiro capítulo do Bhagavadgita, Sanjaya, o narrador, descreve o que se assemelha a um estrondo incrivelmente alarmante e ensurdecedor, quando os dois exércitos preparava-se para a batalha. Nas próprias palavras do texto, ‘conchas, clarins, tambores, surdos e cornetas subitamente soaram juntos, e o som era terrível’. Sanjaya continua a descrição da cena, com todo ruído envolvido, e acrescenta: “Este barulho tumultuoso se apodera dos corações dos filhos de Dhrtarashatra, enchendo céu e terra com seu som”. Tão vívida é a descrição que recebemos, que quase podemos ouvir com nossos ouvidos físicos a terrível cacofonia do som, e sentir dentro de nós o terror do conflito que se aproxima.
            Hoje parece que o mesmo tumulto de som nos ataca, quer literalmente das planícies do Iraque ou, em sentido figurado, dos mercados comerciais e econômicos do mundo. As nuvens de tempestade estão sobre nós e nos sentimos tão temerosos e ansiosos como Arjuna, trêmulos e indecisos, tão confusos e desnorteados como esse representante da condição humana frente ao que parecem ser forças demoníacas soltas no mundo. Há mais de um século o poeta inglês Matthew Arnold descreveu isto muito bem:

         E aqui estamos, como numa sombria planície
Varrida por alarmes confusos de luta e movimento,

Onde à noite se batem exércitos ignorantes.
            Embora não pretenda continuar num estudo do Gita, no capítulo inicial desta bela obra, um ponto merece nossa atenção e nos conduz diretamente ao assunto que desejo tratar. Enquanto Arjuna, tremendo de medo pela visão e o som que o dominam, ainda assim ordena a seu cocheiro, o divino Krishna, levá-lo ao centro do campo entre os dois exércitos adversários. Diz ele: ‘Coloque meu carro no meio, entre os dois exércitos’. E, ao ordenar esta ação a Krishna, Arjuna se dirige a ele como ‘Achyuta’ reconhecendo-o assim como o centro interno ‘imóvel e imutável’ representado por Krishna.
            Por isso sugerimos que a verdadeira e urgente necessidade de nossos dias, para todos  nós colhidos pelo som e pela fúria de nossa atual situação, é nos movermos para o centro e aí ‘estacionar’ nosso carro, porque somente no centro podemos começar a observar a esfera total de ação da existência. Somente quando o veículo que usamos, o eu pessoal, é conduzido a um estado de quietude – parado no centro – estaremos na posição de compreender qual é a ação correta. Identificar-se com um lado ou outro do conflito que turbilhona sobre nós, estar no redemoinho dos ventos da fortuna, correr de um lado para outro buscando soluções externas, puxados e empurrados pelas tempestades da paixão, é agir cegamente sem razão – e certamente sem compreensão das profundas raízes da presente crise que nos aflige. Quando o mundo está em chamas, quando todas as trombetas da miséria humana estão soando, o que se exige é movimento, não uma postura de quietude. Não há tempo para uma tranqüila observação de qualquer centro, mesmo se pudéssemos encontrá-lo. A tempestade está desencadeada; devemos agir!
            Mesmo assim, façamos uma pausa. Numa saliência sobre minha escrivaninha há uma pequena e bela estátua de bronze de Krishna na posição tradicional tantas vezes representada, seu peso descansando levemente sobre uma perna, a outra perna cruzada na frente, os dedos dos pés tocando levemente o solo. Ele está tocando o mais delicado de todos os instrumentos, a flauta, que dificilmente produzirá o som que abafará o ruído das trombetas e tambores. Sua face mostra uma expressão de completa tranqüilidade, de inefável paz. Há – ou assim me parece – um sentido de ação no meio da não-ação. Além do tumulto e fúria da tempestade, há a doce música, pura e agradável da flauta acalmando o ruído do mundo.
            Qual a lição da pequena estátua de Krishna? E qual é o significado da necessidade de Arjuna de se colocar no centro, entre os exércitos prestes a combater? Talvez para nós seja hora de considerar o valor de estar no centro de nosso ser, onde o veículo que usamos a cada dia – a personalidade – deve ficar, controlada nem que seja por um momento, para que possamos ouvir a voz do imutável. Aí poderemos achar o segredo da ação correta – o ‘segredo real’ como o Gita o chama – pelo qual o mundo está buscando tão desesperadamente. Nestes ciclônicos tempos, quando tudo que parece seguro está sendo varrido por tempestades que rugem sobre nós, podemos lembrar – para mudar a metáfora de batalhas para ciclones – que no olho de toda tempestade há completa calma. Aí certamente, pelo menos em sentido figurado, é onde deve estar o teósofo: no centro quieto e tranqüilo. E como o sábio taoísta, poderemos compreender ‘a graça de existência e o uso da não-existência’, citando o paradoxo que indica o tipo de ação que surge natural e espontaneamente da não-ação no centro imutável do ser. Citando uma tradução do belo texto do Tao-Te-Ching:

        Trinta raios convergem para o cubo da roda:
É onde está o não-ser, (o espaço vazio)

Onde está a utilidade da roda.

Do barro se molda um vaso:

É onde está o não-ser,

Onde está a utilidade do vaso.

Portas e janelas são moldadas ao construir uma casa:

É onde está o não-ser,

Onde está a utilidade da casa.

Sendo assim, quando o ser é valorizado,

É o não-ser que tem utilidade.
            Devemos perguntar se isto significa que devemos cessar de ser, tornar-nos nada, um zero em existência? Ou isto indica – como na realidade Arjuna descobriria – um novo modo de ser no qual a ação se origina de um centro sem ação? Talvez a mais elevada forma de ação, a ação correta e verdadeira seja, num paradoxo, não tanto uma ação como uma presença. Citando novamente o Tao:

        Retornar à origem significa quietude;
Quietude significa renovação da vida.
            Assim falou Lao Tze sobre o pré-requisito essencial para uma vida significativa: ‘Mantenha a quietude em todo seu ser’. É esta quietude que é representada tão perfeitamente na pequena estátua de Krishna, uma quietude que era realmente necessária a Arjuna para ouvir os ensinamentos dados por seu cocheiro, a quietude tão sucintamente expressa pelo salmista Davi, na completa simplicidade de sua oração, ‘Fique tranqüilo e saiba que eu sou Deus’. O poeta T. S. Eliot falou desta quietude como ‘o ponto imóvel no mundo que gira’, e o poeta místico irlandês AE o descreveu como ‘este centro dentro de nós através do qual todos os fios do universo são puxados’, um centro completamente imóvel e que ainda serve como um espelho para todos os acontecimentos.
            É muito fácil agir impetuosamente, muito fácil lançar-se apressadamente em atividade com a excitação da paixão para fazer o melhor porque nos importamos tanto pelo bem-estar do mundo. Podemos até ter algum sentimento de culpa se pararmos por alguns momentos, quando todos a nosso redor se desgastam com excesso de tarefas, envolvidos numa atividade infindável de ‘fazer o bem’ como chamamos estas atividades. Especialmente como teósofos, podemos sentir algumas agulhadas na consciência quando, como acontece freqüentemente, nos perguntam ‘o que vocês fazem para amenizar o sofrimento da humanidade? E então, para livrar nossa consciência indicamos as inúmeras atividades da Ordem Teosófica de Serviço – OTS, ou o trabalho individual de alguns membros em diversas áreas.
            Ora, não estou sugerindo que não façamos nada, ou que sentemos em constante contemplação do vazio seja preferível à ação altruísta. Certamente nunca nos aconselharam a voltar as costas a ações que beneficiem os outros, (inclusive os chamados ‘irmãos mais novos’, dos reinos animal e vegetal). Em vez disso devemos propor que a filosofia teosófica dê uma dimensão acrescida ao significado da ação, por que indica claramente uma maneira de viver no mundo, que pode ser definida como o caminho do serviço através da presença. Isto é, nossa simples presença influencia de tal maneira o mundo a ponto de transformá-lo, ou ajudar a realizar essa profunda transformação da consciência, a única solução definitiva para os problemas da humanidade. Essa vida é aquela vivida no centro, ou formar o centro no olho da tempestade. Deste centro brota uma emanação de paz, amor, compaixão e compreensão.
            A psicologia atual reconhece que uma enorme multidão pode ser arrastada num redemoinho por uma única e poderosa pessoa. A história está cheia de registros destes indivíduos, cuja turbulência e excitação acenderam paixões e delírio de todos a seu redor: Genghis Khan, Rasputin, Hitler, etc., a lista é quase infindável. Da mesma forma a psicologia reconhece a influência do indivíduo correto, internamente integro e harmônico que cria um centro de calma externa. A história nos fornece exemplos e ‘grandes homens’, cuja grandiosidade estava em suas maneiras de agir no mundo: desde Krishna a Cristo, santos e salvadores, os sábios, os ‘despertos’(Buddha-s), que desde tempos imemoriais visitaram a humanidade e continuam a nos instigar a encontrar o centro e aí permanecer.
            Há uma história antiga de dois homens que aravam seus campos, uma história que ilustra o que quero dizer. A terra era pedregosa e o tempo mau, faltara chuva e o rio que a irrigava estava seco. Enquanto cavavam seus sulcos, um deles tinha a boca fechada e os olhos fixos. Pensava apenas na dureza de sua vida, na dor de seus pés e de suas pernas. Maltratava seu magro cavalo que não queria andar depressa. Olhando para o companheiro, concluiu que seu cavalo era mais ágil, que seu trigo deveria estar mais alto e granado do que o seu, e que a terra desse homem era mais fácil de arar. Enquanto isso, seu vizinho trabalhava com ritmo e harmonia, concentrando-se em como fazer seus sulcos retos, parando aqui e ali para descansar sua égua. Parecia tranqüilo, sem pressa nem cansaço. Com o calor do sol aumentando, o primeiro batia mais ainda em seu cavalo; o suor banhava sua face e pingava em seus olhos deixando-o quase cego; as veias de suas mãos inchavam quando ele empunhava seu arado. Ele pensava apenas que seu vizinho zombava dele, fazendo seu trabalho lentamente, com a mesma calma em seu rosto. Sua raiva foi num violento crescendo e em sua cabeça repetia-se um refrão: ‘Se eu tivesse seu cavalo poderia cavar duas vezes mais rápido.se eu tivesse seu lote não seria tão difícil arar’. Finalmente em desespero, ele jogou para o lado seu arado, pegou a maior pedra que encontrou e com um grito selvagem correu com ela pelo campo em direção a seu vizinho. No dia seguinte, o outro camponês estava arando seu campo, mas ele agora usava dois cavalos. Mesmo assim, andava mais devagar por estar triste e intrigado com lembrança do dia anterior, quando, surpreendido pelo grito selvagem, viu seu vizinho vir em desabalada corrida, com o braço esticado para jogar-lhe uma enorme pedra. Mas antes que pudesse reagir, viu seu vizinho cair morto a seus pés, ainda agarrando a enorme pedra. Até o dia de morrer, esse homem nunca pôde entender o que se passara na mente de seu vizinho, nem como surgira sua violência selvagem repentina.
            A raiva e a paz são qualidades pessoais que nascem nos fascinantes locais secretos da mente e do coração. Não é suficiente dizer que estes dois homens neste antigo relato tinham estados diferentes de mente e deixar isto por isso mesmo. É muito claro que a diferença entre eles estava num certo nível mais profundo, que atingiu a consciência de um centro que, na realidade, é comum a todos nós. Num caso, o efeito na consciência foi através da mente focada no auto-interesse, na ganância, na inveja e no desejo; no outro caso, a mente estava calma, resoluta, cuidando do animal, da terra e do trabalho a ser realizado. Perguntamos então, será possível cultivar os valores que emergem desse profundo centro dentro de nós, para nos capacitar a ser uma presença de paz no mundo, uma presença que irradie calma e encoraje a criatividade do espírito? É possível desembaraçar nossa natureza psicológica de tudo que produz conflito e violência, permitindo o livre fluxo de energia desde esse centro interno de nosso ser, esse centro comum a todos e à ninguém em especial, e mesmo assim singular em cada vez que opera num indivíduo? Já que Atman – se quisermos designar esse centro – é na verdade universal, e portanto comum a todos; ainda assim, em cada indivíduo se revela sua singularidade de expressão.
            Todos os textos antigos nos dizem que é possível desembaraçar-se de nossa natureza psicológica. O processo é descrito nas escrituras ióguicas e místicas em todas as tradições religiosas, e nos sistemas psicológicos atuais que enfatizam o individualismo, a auto realização e a transformação num nível transpessoal. Na mais bela e verdadeiramente singular de todas as obras de H. P. Blavatsky, A Voz do Silêncio, o processo de desembaraço que produz o tipo de iluminação na qual o indivíduo tona-se, não apenas auto-iluminado, mas um genuíno doador de luz ao mundo, é chamado de ‘a senda paramita’, em terminologia budista, e descreve os sete portais através do quais o aspirante deve passar em sua jornada para o centro.
            Por vezes designadas como ‘virtudes transcendentais’, as paramita-s são qualidades de existir neste centro. Elas estão essencialmente presentes nesse espaço interior ao que podemos chamar de ‘olho’ de nossas tempestades pessoais externas, porque quando chegamos nesse espaço interior – esse centro, esse ‘olho’- as tempestades externas cessam, surge o sol de nosso ser que dispersa até mesmo as nuvens mais sombrias e ameaçadoras. Os textos budistas mahayana enumeram seis ou dez paramitas, ‘virtudes’ ou ‘perfeições’, que devem ser praticadas no caminho do Bodhisattva, a senda da compaixão. H. P. Blavatsky menciona sete, chamando-as de ‘chaves douradas’ que abrem os ‘portais do caminho espinhoso para jnana’ ou sabedoria. Da mesma maneira na Voz do Silêncio estas ‘excelsas virtudes’ são mencionadas como:

        Dana, a chave para a caridade e amor imortal.
Sila, a chave para a harmonia de atos e palavras, a chave que equilibra causa e efeito, e não dá espaço para a ação kármica.

Kshanti, a suave paciência, que nada pode perturbar.

Viraga, a indiferença ao prazer e à dor, o domínio da ilusão, que percebe apenas a verdade.

Virya, a destemida energia que abre caminho do lamaçal das falsidades terrestres até a sublime verdade.

Dhyana, cujas douradas portas conduzem o Naljor ao reino do eterno Sat e à infindável contemplação.

Prajna, a chave que transforma um homem em deus, tornando-o um Bodhisattva, filho dos Dhyani-s.
            Muitos bons e úteis comentários foram escritos acerca destas qualidades sublimes, mas vamos abordá-las considerando como elas podem nos livrar dos maiores grilhões que afligem nossa natureza psicológica – complicações que causam nossas tormentas pessoais. Através da prática destas belas virtudes podemos começar o processo de desatar os nós que nos limitam, nos livrando do envolvimento na confusão e caos que parecem caracterizar nosso mundo contemporâneo. Em conjunto, as paramita-s tornam-se uma maneira de viver desde o centro.
            Hoje a humanidade (e nós como indivíduos) parece estar dominada pela cobiça e pela paixão, apego à riqueza, a posses, à posições e ao poder. Estes são os primeiros dos grandes grilhões que nos mantém enredados na rede da auto-estima, do auto-interesse. Somente a realização, o pleno conhecimento de que a vida é una, indivisa, um todo que em essência ‘ prajna ou sabedoria, pode nos livrar do sentimento de separatividade que promove a cobiça e o próprio interesse. E com esta compreensão surge espontânea e naturalmente uma verdadeira caridade de espírito, dana, uma doação genuína de tudo que somos ao serviço de tudo que vive. É a atitude indicada em dos Upanishad-s: ‘O marido é valioso, não pelo bem do marido, mas pelo bem do Eu é o marido valioso’. ‘A esposa é valiosa, não pelo bem da esposa, mas pelo bem do Eu é a esposa valiosa’. E o texto continua com outros relacionamentos; tudo é valioso apenas ‘pelo bem do Eu’, o Uno que está no centro de todos os seres. Assim é que aprendemos a agir com um espírito de verdadeira universalidade, por nossa conscientização da unidade; assim todo pensamento, sentimento e ação está baseada nesta conscientização e portanto está cheia de amor e cuidado pela preciosidade da vida. Cada ação, sem mácula pela preocupação com o eu pessoal, brota da não-ação no centro de nosso ser.
            A segunda maior aflição que nos prende e embaraça, causando miséria e infelicidade no meio das tempestades da existência, são nossas antipatias, nossas animosidades e ciúmes, o gostar e o desgostar que brotam deste sentimento do eu separado. É o mal universal que envenena tantos relacionamentos, enraizado em nossa auto preocupação e na incapacidade para reconhecer a realidade da vida una. Alimentando nosso próprio interesse, não vemos como agir em conformidade e cooperação com as inexoráveis leis da natureza, rechaçando o espírito de discórdia e resistência. E a contemplação interna da vida una, dhyana, nos faz reconhecer que há apenas uma lei, que é ‘a chave da harmonia na palavra e na ação’, sila. Então nossa conduta será baseada na grande lei da causalidade, karma, e sempre agiremos deste centro interno de calma com uma desanuviada percepção espiritual.
            Subordinado à nossa ganância e desejo, a nossos gostos e repúdios, está o terceiro grande impedimento, a ilusão que nasce da ignorância de quem somos realmente, o fracasso em discernir entre o real e o irreal, entre o verdadeiro e o falso. Assim como dana e prajna, bem como sila e dhyana formam pares complementares, assim também, ao nos livrarmos do terceiro impedimento, as duas virtudes kshanti e virya podem estar relacionadas. A essência da paciência, coragem e calma, que é kshanti, requer a energia destemida de virya para sua prática continuada. É kshanti que dá coragem ao coração vacilante do aspirante e aquele que a possui se deparará com todas as tentações, todos os fracassos e desapontamentos com a confiança que brota de uma vontade suave e persistente, com a coragem da alma que é a verdadeira virya. Já que virya tem finalidade, é determinação unidirecional, é a estabilidade de coração e mente que conduz o indivíduo ao triunfo derradeiro. Este sabe que certamente ‘cada fracasso é sucesso, e cada tentativa sincera trará mais tarde sua recompensa’, nas palavras da Voz do Silêncio. Assim aprendemos a ir além dos obstáculos causados pela ilusão para o reino da luz, ao centro, onde não existe a ignorância, onde a ansiedade pelo futuro e as lamentações do passado não mais nos atingirão.
            Todos nós temos um anseio quase insaciável por coisas para o eu pessoal, quer seja por coisas físicas, por capacidades psíquicas ou por qualidades espirituais. É o anseio que parece ‘roer’ os outros na busca constante por algo mais, mesmo quando não possamos definir esse ‘mais’ que desejamos ter. Esta busca inevitavelmente nos limita, nos prende ainda mais firmemente ao sentimento do ‘eu’. Desta maneira balançamos entre os opostos de prazer e dor, buscando um e evitando o outro, vivendo continuamente as tormentas do querer e do não querer. Mas esta quarta limitação pode diminuir quando começamos a praticar esta simples virtude que é a chave da porta central, ‘a porta do equilíbrio’, viraga. Nas palavras de Helena P. Blavatsky, é ‘a indiferença ao prazer e à dor’, talvez uma melhor definição fosse equanimidade, uma aceitação imparcial para tudo que a vida nos traga. É um equilíbrio interior, encontrado somente quando vivemos no centro, onde o Ser é Uno, e não no meio de tormentas de desejos e paixões pessoais. No centro há liberdade para quem puder aceitar igualmente alegria e tristeza.
            Viver no centro, viver no olho da tempestade onde há completa calma, e por estarmos no mundo tornar-nos um ponto que irradia luza: certamente isto é o ideal, embora sua realização completa esteja no futuro. Embora com passos vacilantes, agora podemos iniciar o caminho das paramita-s e desta maneira soltar os grilhões que nos mantém presos a nosso próprio disfarçado sentimento de um eu pessoal. A Voz do Silêncio com tanta beleza expressa o ideal e a possibilidade de caminhar para ele:
            “Segue a roda da vida; segue a roda do dever com a nação e família, a amigos e inimigos. Se não podes ser o sol, sejas então o modesto planeta. Sim, se não puderes brilhar como o sol do meio-dia sobre o cume da montanha de eterna pureza, escolhe então, Ó neófito, um caminho mais modesto.

            Indica o caminho - nem que esteja escondido, perdido na multidão – como faz a estrela polar para os que caminham na escuridão. Dá luz e conforto ao cansado peregrino, e descobre quem sabe ainda menos do que tu.’

            Isto é o que é necessário, porque começar seja tudo que nos é pedido. Ainda assim, não começar, porque as condições ciclônicas do mundo em desordem parecem demasiado pesadas para que nossos pequenos esforços façam diferença, pode nos levar não somente ao fracasso, mas a trair tudo o que recebemos. Pois ‘cada fracasso é sucesso e cada tentativa sincera recebe em tempo sua recompensa’.
            Quando observamos nossa atual posição e o desafio que se nos apresenta pelas tempestades que rugem sobre nós, podemos parar um momento e considerar o movimento que sempre é possível para qualquer um de nós: o movimento para dentro, para o centro, onde mora a paz. Ou, usando outra imagem, observar o momento fugaz do alvorecer antes que comecem as frenéticas atividades do dia, como o descreveu a escritora inglesa Jacquetta Hawkes, em seu livro A Terra:
            “Com absoluta tranqüilidade a terra gira em seu eixo a algumas milhas por hora, e ao redor do sol com onze mil milhas por minuto; a terra, a estrela polar e o sol ainda invisível estão girando suas calotas a meio milhão de milhas por hora. Nem uma folha se mexe. Somente o canto do pássaro quebra a quietude do alvorecer.’
            O movimento dentro do centro, ouvindo o canto do pássaro ao alvorecer, na quietude que se encontra somente no centro, no ‘olho’ do furacão: este é o caminho que devemos seguir na antiga jornada que leva ao verdadeiro coração do universo. E do centro, nos movermos novamente para fora, mas agora para viver de maneira diferente, porque trazemos a todas as ações externas o silêncio imóvel do Uno, do sempre presente Ser. Como se a quietude do alvorecer permeasse com seu frescor cada hora de nossos atarefados dias.”

Joy Mills foi uma educadora. Presidente da Sociedade Teosófica nos Estados Unidos entre os anos de 1965 e 1974 e depois, vice-presidente internacional da ST com sede em Adyar, na Índia entre os anos de 1974 e 1980. Premiada com a medalha Subba Row em 2011 por suas contribuições à literatura Teosófica.
Foto: “Olho de Deus” ou “Maternidade”. São os dois nomes atribuídos a esta imagem de Sean R Heavey,um caçador de tempestades que mora em Glasgow, Montana.



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