No primeiro capítulo do Bhagavadgita,
Sanjaya, o narrador, descreve o que se assemelha a um estrondo incrivelmente
alarmante e ensurdecedor, quando os dois exércitos preparava-se para a batalha.
Nas próprias palavras do texto, ‘conchas, clarins, tambores, surdos e cornetas
subitamente soaram juntos, e o som era terrível’. Sanjaya continua a descrição
da cena, com todo ruído envolvido, e acrescenta: “Este barulho tumultuoso se
apodera dos corações dos filhos de Dhrtarashatra, enchendo céu e terra com seu
som”. Tão vívida é a descrição que recebemos, que quase podemos ouvir com nossos
ouvidos físicos a terrível cacofonia do som, e sentir dentro de nós o terror do
conflito que se aproxima.
Hoje parece que o mesmo tumulto de
som nos ataca, quer literalmente das planícies do Iraque ou, em sentido
figurado, dos mercados comerciais e econômicos do mundo. As nuvens de tempestade
estão sobre nós e nos sentimos tão temerosos e ansiosos como Arjuna, trêmulos e
indecisos, tão confusos e desnorteados como esse representante da condição
humana frente ao que parecem ser forças demoníacas soltas no mundo. Há mais de
um século o poeta inglês Matthew Arnold descreveu isto muito
bem:
E
aqui estamos, como numa sombria planície
Varrida por alarmes confusos de luta e movimento,Onde à noite se batem exércitos ignorantes.
Embora não pretenda continuar num
estudo do Gita, no capítulo inicial
desta bela obra, um ponto merece nossa atenção e nos conduz diretamente ao
assunto que desejo tratar. Enquanto Arjuna, tremendo de medo pela visão e o som
que o dominam, ainda assim ordena a seu cocheiro, o divino Krishna, levá-lo ao
centro do campo entre os dois exércitos adversários. Diz ele: ‘Coloque meu carro
no meio, entre os dois exércitos’. E, ao ordenar esta ação a Krishna, Arjuna se
dirige a ele como ‘Achyuta’
reconhecendo-o assim como o centro interno ‘imóvel e imutável’ representado por
Krishna.
Por isso sugerimos que a verdadeira
e urgente necessidade de nossos dias, para todos nós colhidos pelo som e pela fúria de nossa
atual situação, é nos movermos para o centro e aí ‘estacionar’ nosso carro,
porque somente no centro podemos começar a observar a esfera total de ação da
existência. Somente quando o veículo que usamos, o eu pessoal, é conduzido a um
estado de quietude – parado no centro – estaremos na posição de compreender qual
é a ação correta. Identificar-se com um lado ou outro do conflito que turbilhona
sobre nós, estar no redemoinho dos ventos da fortuna, correr de um lado para
outro buscando soluções externas, puxados e empurrados pelas tempestades da
paixão, é agir cegamente sem razão – e certamente sem compreensão das profundas
raízes da presente crise que nos aflige. Quando o mundo está em chamas, quando
todas as trombetas da miséria humana estão soando, o que se exige é movimento,
não uma postura de quietude. Não há tempo para uma tranqüila observação de
qualquer centro, mesmo se pudéssemos encontrá-lo. A tempestade está
desencadeada; devemos agir!
Mesmo assim, façamos uma pausa. Numa
saliência sobre minha escrivaninha há uma pequena e bela estátua de bronze de
Krishna na posição tradicional tantas vezes representada, seu peso descansando
levemente sobre uma perna, a outra perna cruzada na frente, os dedos dos pés
tocando levemente o solo. Ele está tocando o mais delicado de todos os
instrumentos, a flauta, que dificilmente produzirá o som que abafará o ruído das
trombetas e tambores. Sua face mostra uma expressão de completa tranqüilidade,
de inefável paz. Há – ou assim me parece – um sentido de ação no meio da
não-ação. Além do tumulto e fúria da tempestade, há a doce música, pura e
agradável da flauta acalmando o ruído do mundo.
Qual a lição da pequena estátua de
Krishna? E qual é o significado da necessidade de Arjuna de se colocar no
centro, entre os exércitos prestes a combater? Talvez para nós seja hora de
considerar o valor de estar no centro de nosso ser, onde o veículo que usamos a
cada dia – a personalidade – deve ficar, controlada nem que seja por um momento,
para que possamos ouvir a voz do imutável. Aí poderemos achar o segredo da ação
correta – o ‘segredo real’ como o Gita o chama – pelo qual o mundo está
buscando tão desesperadamente. Nestes ciclônicos tempos, quando tudo que parece
seguro está sendo varrido por tempestades que rugem sobre nós, podemos lembrar –
para mudar a metáfora de batalhas para ciclones – que no olho de toda tempestade
há completa calma. Aí certamente, pelo menos em sentido figurado, é onde deve
estar o teósofo: no centro quieto e tranqüilo. E como o sábio taoísta, poderemos
compreender ‘a graça de existência e o uso da não-existência’, citando o
paradoxo que indica o tipo de ação que surge natural e espontaneamente da
não-ação no centro imutável do ser. Citando uma tradução do belo texto do Tao-Te-Ching:
Trinta
raios convergem para o cubo da roda:
É onde está o não-ser, (o espaço vazio)Onde está a utilidade da roda.Do barro se molda um vaso:É onde está o não-ser,Onde está a utilidade do vaso.Portas e janelas são moldadas ao construir uma casa:É onde está o não-ser,Onde está a utilidade da casa.Sendo assim, quando o ser é valorizado,É o não-ser que tem utilidade.
Devemos perguntar se isto significa
que devemos cessar de ser, tornar-nos nada, um zero em existência? Ou isto
indica – como na realidade Arjuna descobriria – um novo modo de ser no qual a
ação se origina de um centro sem ação? Talvez a mais elevada forma de ação, a
ação correta e verdadeira seja, num paradoxo, não tanto uma ação como uma
presença. Citando novamente o Tao:
Retornar
à origem significa quietude;
Quietude significa renovação da vida.
Assim falou Lao Tze sobre o
pré-requisito essencial para uma vida significativa: ‘Mantenha a quietude em
todo seu ser’. É esta quietude que é representada tão perfeitamente na pequena
estátua de Krishna, uma quietude que era realmente necessária a Arjuna para
ouvir os ensinamentos dados por seu cocheiro, a quietude tão sucintamente
expressa pelo salmista Davi, na completa simplicidade de sua oração, ‘Fique
tranqüilo e saiba que eu sou Deus’. O poeta T. S. Eliot falou desta quietude
como ‘o ponto imóvel no mundo que gira’, e o poeta místico irlandês AE o
descreveu como ‘este centro dentro de nós através do qual todos os fios do
universo são puxados’, um centro completamente imóvel e que ainda serve como um
espelho para todos os acontecimentos.
É muito fácil agir impetuosamente,
muito fácil lançar-se apressadamente em atividade com a excitação da paixão para
fazer o melhor porque nos importamos tanto pelo bem-estar do mundo. Podemos até
ter algum sentimento de culpa se pararmos por alguns momentos, quando todos a
nosso redor se desgastam com excesso de tarefas, envolvidos numa atividade
infindável de ‘fazer o bem’ como chamamos estas atividades. Especialmente como
teósofos, podemos sentir algumas agulhadas na consciência quando, como acontece
freqüentemente, nos perguntam ‘o que vocês fazem para amenizar o sofrimento da
humanidade? E então, para livrar nossa consciência indicamos as inúmeras
atividades da Ordem Teosófica de Serviço – OTS, ou o trabalho individual de
alguns membros em diversas áreas.
Ora, não estou sugerindo que não
façamos nada, ou que sentemos em constante contemplação do vazio seja preferível
à ação altruísta. Certamente nunca nos aconselharam a voltar as costas a ações
que beneficiem os outros, (inclusive os chamados ‘irmãos mais novos’, dos reinos
animal e vegetal). Em vez disso devemos propor que a filosofia teosófica dê uma
dimensão acrescida ao significado da ação, por que indica claramente uma maneira
de viver no mundo, que pode ser definida como o caminho do serviço através da
presença. Isto é, nossa simples presença influencia de tal maneira o mundo a
ponto de transformá-lo, ou ajudar a realizar essa profunda transformação da
consciência, a única solução definitiva para os problemas da humanidade. Essa
vida é aquela vivida no centro, ou formar o centro no olho da tempestade. Deste
centro brota uma emanação de paz, amor, compaixão e compreensão.
A psicologia atual reconhece que uma
enorme multidão pode ser arrastada num redemoinho por uma única e poderosa
pessoa. A história está cheia de registros destes indivíduos, cuja turbulência e
excitação acenderam paixões e delírio de todos a seu redor: Genghis Khan,
Rasputin, Hitler, etc., a lista é quase infindável. Da mesma forma a psicologia
reconhece a influência do indivíduo correto, internamente integro e harmônico
que cria um centro de calma externa. A história nos fornece exemplos e ‘grandes
homens’, cuja grandiosidade estava em suas maneiras de agir no mundo: desde
Krishna a Cristo, santos e salvadores, os sábios, os ‘despertos’(Buddha-s), que desde tempos imemoriais
visitaram a humanidade e continuam a nos instigar a encontrar o centro e aí
permanecer.
Há uma história antiga de dois
homens que aravam seus campos, uma história que ilustra o que quero dizer. A
terra era pedregosa e o tempo mau, faltara chuva e o rio que a irrigava estava
seco. Enquanto cavavam seus sulcos, um deles tinha a boca fechada e os olhos
fixos. Pensava apenas na dureza de sua vida, na dor de seus pés e de suas
pernas. Maltratava seu magro cavalo que não queria andar depressa. Olhando para
o companheiro, concluiu que seu cavalo era mais ágil, que seu trigo deveria
estar mais alto e granado do que o seu, e que a terra desse homem era mais fácil
de arar. Enquanto isso, seu vizinho trabalhava com ritmo e harmonia,
concentrando-se em como fazer seus sulcos retos, parando aqui e ali para
descansar sua égua. Parecia tranqüilo, sem pressa nem cansaço. Com o calor do
sol aumentando, o primeiro batia mais ainda em seu cavalo; o suor banhava sua
face e pingava em seus olhos deixando-o quase cego; as veias de suas mãos
inchavam quando ele empunhava seu arado. Ele pensava apenas que seu vizinho
zombava dele, fazendo seu trabalho lentamente, com a mesma calma em seu rosto.
Sua raiva foi num violento crescendo e em sua cabeça repetia-se um refrão: ‘Se
eu tivesse seu cavalo poderia cavar duas vezes mais rápido.se eu tivesse seu
lote não seria tão difícil arar’. Finalmente em desespero, ele jogou para o lado
seu arado, pegou a maior pedra que encontrou e com um grito selvagem correu com
ela pelo campo em direção a seu vizinho. No dia seguinte, o outro camponês
estava arando seu campo, mas ele agora usava dois cavalos. Mesmo assim, andava
mais devagar por estar triste e intrigado com lembrança do dia anterior, quando,
surpreendido pelo grito selvagem, viu seu vizinho vir em desabalada corrida, com
o braço esticado para jogar-lhe uma enorme pedra. Mas antes que pudesse reagir,
viu seu vizinho cair morto a seus pés, ainda agarrando a enorme pedra. Até o dia
de morrer, esse homem nunca pôde entender o que se passara na mente de seu
vizinho, nem como surgira sua violência selvagem repentina.
A raiva e a paz são qualidades
pessoais que nascem nos fascinantes locais secretos da mente e do coração. Não é
suficiente dizer que estes dois homens neste antigo relato tinham estados
diferentes de mente e deixar isto por isso mesmo. É muito claro que a diferença
entre eles estava num certo nível mais profundo, que atingiu a consciência de um
centro que, na realidade, é comum a todos nós. Num caso, o efeito na consciência
foi através da mente focada no auto-interesse, na ganância, na inveja e no
desejo; no outro caso, a mente estava calma, resoluta, cuidando do animal, da
terra e do trabalho a ser realizado. Perguntamos então, será possível cultivar
os valores que emergem desse profundo centro dentro de nós, para nos capacitar a
ser uma presença de paz no mundo, uma presença que irradie calma e encoraje a
criatividade do espírito? É possível desembaraçar nossa natureza psicológica de
tudo que produz conflito e violência, permitindo o livre fluxo de energia desde
esse centro interno de nosso ser, esse centro comum a todos e à ninguém em
especial, e mesmo assim singular em cada vez que opera num indivíduo? Já que Atman – se quisermos designar esse
centro – é na verdade universal, e portanto comum a todos; ainda assim, em cada
indivíduo se revela sua singularidade de expressão.
Todos os textos antigos nos dizem
que é possível desembaraçar-se de nossa natureza psicológica. O processo é
descrito nas escrituras ióguicas e místicas em todas as tradições religiosas, e
nos sistemas psicológicos atuais que enfatizam o individualismo, a auto
realização e a transformação num nível transpessoal. Na mais bela e
verdadeiramente singular de todas as obras de H. P. Blavatsky, A Voz do Silêncio, o processo de
desembaraço que produz o tipo de iluminação na qual o indivíduo tona-se, não
apenas auto-iluminado, mas um genuíno doador de luz ao mundo, é chamado de ‘a
senda paramita’, em terminologia
budista, e descreve os sete portais através do quais o aspirante deve passar em
sua jornada para o centro.
Por vezes designadas como ‘virtudes
transcendentais’, as paramita-s são
qualidades de existir neste centro. Elas estão essencialmente presentes nesse
espaço interior ao que podemos chamar de ‘olho’ de nossas tempestades pessoais
externas, porque quando chegamos nesse espaço interior – esse centro, esse
‘olho’- as tempestades externas cessam, surge o sol de nosso ser que dispersa
até mesmo as nuvens mais sombrias e ameaçadoras. Os textos budistas mahayana
enumeram seis ou dez paramitas,
‘virtudes’ ou ‘perfeições’, que devem ser praticadas no caminho do Bodhisattva, a senda da compaixão. H. P.
Blavatsky menciona sete, chamando-as de ‘chaves douradas’ que abrem os ‘portais
do caminho espinhoso para jnana’ ou
sabedoria. Da mesma maneira na Voz do
Silêncio estas ‘excelsas virtudes’ são mencionadas como:
Dana,
a chave para a caridade e amor imortal.
Sila, a chave para a harmonia de atos e palavras, a chave que equilibra causa e efeito, e não dá espaço para a ação kármica.Kshanti, a suave paciência, que nada pode perturbar.Viraga, a indiferença ao prazer e à dor, o domínio da ilusão, que percebe apenas a verdade.Virya, a destemida energia que abre caminho do lamaçal das falsidades terrestres até a sublime verdade.Dhyana, cujas douradas portas conduzem o Naljor ao reino do eterno Sat e à infindável contemplação.Prajna, a chave que transforma um homem em deus, tornando-o um Bodhisattva, filho dos Dhyani-s.
Muitos bons e úteis comentários
foram escritos acerca destas qualidades sublimes, mas vamos abordá-las
considerando como elas podem nos livrar dos maiores grilhões que afligem nossa
natureza psicológica – complicações que causam nossas tormentas pessoais.
Através da prática destas belas virtudes podemos começar o processo de desatar
os nós que nos limitam, nos livrando do envolvimento na confusão e caos que
parecem caracterizar nosso mundo contemporâneo. Em conjunto, as paramita-s tornam-se uma maneira de
viver desde o centro.
Hoje a humanidade (e nós como
indivíduos) parece estar dominada pela cobiça e pela paixão, apego à riqueza, a
posses, à posições e ao poder. Estes são os primeiros dos grandes grilhões que
nos mantém enredados na rede da auto-estima, do auto-interesse. Somente a
realização, o pleno conhecimento de que a vida é una, indivisa, um todo que em
essência ‘ prajna ou sabedoria, pode nos livrar do sentimento de separatividade
que promove a cobiça e o próprio interesse. E com esta compreensão surge
espontânea e naturalmente uma verdadeira caridade de espírito, dana, uma doação genuína de tudo que
somos ao serviço de tudo que vive. É a atitude indicada em dos Upanishad-s: ‘O
marido é valioso, não pelo bem do marido, mas pelo bem do Eu é o marido
valioso’. ‘A esposa é valiosa, não pelo bem da esposa, mas pelo bem do Eu é a
esposa valiosa’. E o texto continua com outros relacionamentos; tudo é valioso
apenas ‘pelo bem do Eu’, o Uno que está no centro de todos os seres. Assim é que
aprendemos a agir com um espírito de verdadeira universalidade, por nossa
conscientização da unidade; assim todo pensamento, sentimento e ação está
baseada nesta conscientização e portanto está cheia de amor e cuidado pela
preciosidade da vida. Cada ação, sem mácula pela preocupação com o eu pessoal,
brota da não-ação no centro de nosso ser.
A segunda maior aflição que nos
prende e embaraça, causando miséria e infelicidade no meio das tempestades da
existência, são nossas antipatias, nossas animosidades e ciúmes, o gostar e o
desgostar que brotam deste sentimento do eu separado. É o mal universal que
envenena tantos relacionamentos, enraizado em nossa auto preocupação e na
incapacidade para reconhecer a realidade da vida una. Alimentando nosso próprio
interesse, não vemos como agir em conformidade e cooperação com as inexoráveis
leis da natureza, rechaçando o espírito de discórdia e resistência. E a
contemplação interna da vida una, dhyana, nos faz reconhecer que há apenas
uma lei, que é ‘a chave da harmonia na palavra e na ação’, sila. Então nossa conduta será baseada
na grande lei da causalidade, karma,
e sempre agiremos deste centro interno de calma com uma desanuviada percepção
espiritual.
Subordinado à nossa ganância e
desejo, a nossos gostos e repúdios, está o terceiro grande impedimento, a ilusão
que nasce da ignorância de quem somos realmente, o fracasso em discernir entre o
real e o irreal, entre o verdadeiro e o falso. Assim como dana e prajna, bem como sila e dhyana formam pares complementares,
assim também, ao nos livrarmos do terceiro impedimento, as duas virtudes kshanti e virya podem estar relacionadas. A
essência da paciência, coragem e calma, que é kshanti, requer a energia destemida de
virya para sua prática continuada. É
kshanti que dá coragem ao coração
vacilante do aspirante e aquele que a possui se deparará com todas as tentações,
todos os fracassos e desapontamentos com a confiança que brota de uma vontade
suave e persistente, com a coragem da alma que é a verdadeira virya. Já que virya tem finalidade, é determinação
unidirecional, é a estabilidade de coração e mente que conduz o indivíduo ao
triunfo derradeiro. Este sabe que certamente ‘cada fracasso é sucesso, e cada
tentativa sincera trará mais tarde sua recompensa’, nas palavras da Voz do Silêncio. Assim aprendemos a ir
além dos obstáculos causados pela ilusão para o reino da luz, ao centro, onde
não existe a ignorância, onde a ansiedade pelo futuro e as lamentações do
passado não mais nos atingirão.
Todos nós temos um anseio quase
insaciável por coisas para o eu pessoal, quer seja por coisas físicas, por
capacidades psíquicas ou por qualidades espirituais. É o anseio que parece
‘roer’ os outros na busca constante por algo mais, mesmo quando não possamos
definir esse ‘mais’ que desejamos ter. Esta busca inevitavelmente nos limita,
nos prende ainda mais firmemente ao sentimento do ‘eu’. Desta maneira balançamos
entre os opostos de prazer e dor, buscando um e evitando o outro, vivendo
continuamente as tormentas do querer e do não querer. Mas esta quarta limitação
pode diminuir quando começamos a praticar esta simples virtude que é a chave da
porta central, ‘a porta do equilíbrio’, viraga. Nas palavras de Helena P.
Blavatsky, é ‘a indiferença ao prazer e à dor’, talvez uma melhor definição
fosse equanimidade, uma aceitação imparcial para tudo que a vida nos traga. É um
equilíbrio interior, encontrado somente quando vivemos no centro, onde o Ser é
Uno, e não no meio de tormentas de desejos e paixões pessoais. No centro há
liberdade para quem puder aceitar igualmente alegria e tristeza.
Viver no centro, viver no olho da
tempestade onde há completa calma, e por estarmos no mundo tornar-nos um ponto
que irradia luza: certamente isto é o ideal, embora sua realização completa
esteja no futuro. Embora com passos vacilantes, agora podemos iniciar o caminho
das paramita-s e desta maneira soltar
os grilhões que nos mantém presos a nosso próprio disfarçado sentimento de um eu
pessoal. A Voz do Silêncio com tanta
beleza expressa o ideal e a possibilidade de caminhar para ele:
“Segue a roda da vida; segue a roda do dever com a nação e família, a amigos e inimigos. Se não podes ser o sol, sejas então o modesto planeta. Sim, se não puderes brilhar como o sol do meio-dia sobre o cume da montanha de eterna pureza, escolhe então, Ó neófito, um caminho mais modesto.Indica o caminho - nem que esteja escondido, perdido na multidão – como faz a estrela polar para os que caminham na escuridão. Dá luz e conforto ao cansado peregrino, e descobre quem sabe ainda menos do que tu.’
Isto é o que é necessário, porque
começar seja tudo que nos é pedido. Ainda assim, não começar, porque as
condições ciclônicas do mundo em desordem parecem demasiado pesadas para que
nossos pequenos esforços façam diferença, pode nos levar não somente ao
fracasso, mas a trair tudo o que recebemos. Pois ‘cada fracasso é sucesso e cada
tentativa sincera recebe em tempo sua recompensa’.
Quando observamos nossa atual
posição e o desafio que se nos apresenta pelas tempestades que rugem sobre nós,
podemos parar um momento e considerar o movimento que sempre é possível para
qualquer um de nós: o movimento para dentro, para o centro, onde mora a paz. Ou,
usando outra imagem, observar o momento fugaz do alvorecer antes que comecem as
frenéticas atividades do dia, como o descreveu a escritora inglesa Jacquetta
Hawkes, em seu livro A
Terra:
“Com absoluta tranqüilidade a terra
gira em seu eixo a algumas milhas por hora, e ao redor do sol com onze mil
milhas por minuto; a terra, a estrela polar e o sol ainda invisível estão
girando suas calotas a meio milhão de milhas por hora. Nem uma folha se mexe.
Somente o canto do pássaro quebra a quietude do alvorecer.’
O movimento dentro do centro,
ouvindo o canto do pássaro ao alvorecer, na quietude que se encontra somente no
centro, no ‘olho’ do furacão: este é o caminho que devemos seguir na antiga
jornada que leva ao verdadeiro coração do universo. E do centro, nos movermos
novamente para fora, mas agora para viver de maneira diferente, porque trazemos
a todas as ações externas o silêncio imóvel do Uno, do sempre presente Ser. Como
se a quietude do alvorecer permeasse com seu frescor cada hora de nossos
atarefados dias.”
Joy Mills foi uma educadora. Presidente da Sociedade Teosófica nos Estados Unidos entre os anos de 1965 e 1974 e depois, vice-presidente internacional da ST com sede em Adyar, na Índia entre os anos de 1974 e 1980. Premiada com a medalha Subba Row em 2011 por suas contribuições à literatura Teosófica.
Foto:
“Olho de Deus” ou “Maternidade”. São os dois nomes atribuídos
a esta imagem de Sean R Heavey,um
caçador de tempestades que mora em Glasgow, Montana.
Fonte:
http://lojateosoficadharma.blogspot.com.br/2016/01/no-olho-da-tempestade-viver-no-centro.html
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