Hoje
vamos tratar de um texto bíblico muito apreciado no Cristianismo e, também,
muito controvertido, que é o 4º evangelho, tradicionalmente atribuído ao
apóstolo João, o discípulo amado.
Nesse
evangelho, tudo pode ser discutido, desde a sua autoria até a historicidade de
sua narrativa e mensagem que pretende
transmitir, porque está escrito numa linguagem eminentemente simbólica e mesmo
enigmática, sendo por isso chamado de evangelho esotérico. Muitos pesquisadores
dizem ser gnóstico esse texto de quase 2.000 anos. Não seria impróprio chamá-lo
de teosófico, porque ele se ocupa da origem do Universo (o macrocosmo) e sua
relação com o homem (o microcosmo), um assunto muito ao gosto da teosofia.
Enquanto os três primeiros evangelhos se harmonizam quanto à vida de Cristo, o
evangelho joanino destoa do aspecto biográfico, fazendo um ensaio filosófico
sobre a natureza do fundador do Cristianismo e seu papel no Universo como força
criadora e regeneradora. Assim, o Evangelho de São João, além de ser um dos
pilares da teologia cristã, é um livro que interessa a não-cristãos em busca de
uma sabedoria superior ou divina. Por se tratar do mais profundo e elevado dos
evangelhos, é representado na iconografia cristã pela águia, a ave que olha
mais de perto o sol e simboliza a contemplação e o conhecimento espiritual.
A obra foi escrita em grego, no fim do
primeiro século, muito provavelmente em Éfeso, uma cidade cosmopolita e
próspera, situada na Ásia Menor (hoje Turquia), que, na época de Cristo,
pertencia ao Império Romano, mas preservava o estilo de vida grego, sendo um
foco da filosofia grega, da gnose e das doutrinas herméticas. Em Éfeso, viviam
vários adeptos do Cristianismo e muitos judeus helenizados, ao lado de
egípcios, persas e fenícios, também helenizados por força do empreendimento
expansionista promovido no Oriente Médio, por Alexandre, o Grande, séculos
antes.
O
grego era, no século 1º, não só língua da cultura e da filosofia, mas também o
instrumento de comunicação de comerciantes e viajantes. O próprio cidadão
romano instruído dominava esse idioma e adotava a cultura helênica, dada a
superioridade da civilização grega. Mesmo quando o latim foi imposto como
língua oficial, esse idioma continuou a ter o prestígio como língua das pessoas
cultas. Os judeus, dos quais surgiram os cristãos, valeram-se de muitos
conceitos gregos em sua doutrina religiosa. E os cristãos seguiram-lhes as
pegadas, incorporando muitos helenismos à sua teologia. Não é exagero dizer que
a Igreja Cristã é grega, a começar pelo nome - Christos (em gr., o ungido). O
discurso cristão está permeado de helenismos - apóstolo, presbítero, batismo,
epifania, evangelho, paráclito, carisma, catecismo e tantos outros. Todos os
livros do Novo Testamento, com exceção do Evangelho de Mateus, foram escritos
originalmente em grego. Em sendo a língua da filosofia, o grego logo se tornou
também a língua das religiões e da ciência, além de ser um idioma literário que
produziu grandes poetas até hoje lembrados.
Mas,
não vamos falar de todo o 4º evangelho, senão apenas dos versículos
introdutórios que compõem o prólogo. Primeiro, porque o prólogo faz uma resenha
do evangelho, de sorte que compreendo-se o prólogo, não há necessidade de ler o
restante da obra. Segundo, porque o prólogo é o trecho mais importante desse
evangelho por relacionar o Cosmo, o Cristo e o homem. É tão importante que
chegou a fazer parte da missa católica, recitado no fim do culto para a
reflexão dos fiéis. Tem a estrutura de um poema, um bonito poema apesar de
integrar uma obra de prosa. Supõe-se que o prólogo tenha preexistido ao
evangelho como um hino religioso (cristão ou não) que depois foi adaptado pelo
evangelista ou por seu editor como introdução solene ao 4º evangelho. Abre com
uma afirmação grandiloquente bastante conhecida: " No princípio era o
Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus". Algumas versões da Bíblia em português
preferem traduzir: "No princípio era a Palavra e a Palavra estava com Deus
e a Palavra era Deus", porque verbo (do latim, verbum) é sinônimo de
palavra.
A
pergunta que faço é: Será que o verbo ou palavra expressa bem o que o
evangelista quis dizer? No original grego, está escrito que no princípio era o
Logos, um termo ambíguo de difícil tradução que, no entanto, era usado desde o
século 5º a.C, em sentido filosófico de princípio, razão ou lei racional que
governa o mundo. Já Heráclito de Éfeso dizia: "Os homens são obtusos com
relação ao logos, se bem que tudo aconteça segundo o logos".
Os
filósofos estóicos empregaram o termo para designar a razão divina imanente no
homem e em todo o universo. Segundo eles, dois princípios regem o Cosmo: um
passivo, que é a matéria, e outro ativo, que é a razão divina, a qual atuando
na matéria lhe dá qualidade. Sustentavam, portanto, que Deus penetra toda a
realidade, incluindo-se a alma humana, de maneira que tudo no Universo é
racional, e o homem que quiser viver sabiamente há de seguir a razão, o Logos
identificado com a sabedoria eterna ou ordem cósmica.
Ora,
o estoicismo predominava no pensamento helenístico do primeiro século, sendo
mais que doutrina, uma prática de vida adotada por pessoas das mais variadas
crenças, no que tange à moral universalista da igualdade entre todos os homens,
ao cultivo das virtudes, à ascese espiritual, à fraternidade humana e à
aceitação dos reveses da vida. É de presumir que o evangelista empregou a
expressão no sentido filosófico de razão divina e não no sentido de palavra,
que é mero elemento lingüístico. Se quisesse referir-se a conjunto de sons
articulados, o redator tinha à sua disposição três vocábulos específicos: lalia
(fala), phone (som falado) e graphein (som escrito). Por que iria valer-se de
um termo metafísico para designar palavra? De certo, o hagiógrafo quis dizer
muito mais do que diz o texto latino da Bíblia, adotado como tradução oficial
da Igreja.
A
tradução de Logos como razão ou mente divina presente no homem casa-se bem com
a metáfora da luz mencionada seis vezes no prólogo e outras tantas no corpo do
evangelho até a revelação explícita de Cristo, no capitulo 8: "Eu sou a
luz do mundo, quem me segue não andará nas trevas, pelo contrario terá a luz da
vida". A luz simboliza, de longa data, nas mais antigas culturas como a
chinesa, a indiana e a árabe, o conhecimento, a sabedoria, a consciência que
percebe com clareza e, portanto, isenta de ilusões. A luz está também
relacionada com a experiência mística pela qual o homem amplia a consciência e
se transforma em ser divino. Com a alegoria da caverna, Platão diz que no mundo
fenomênico os homens estão como que presos em uma caverna iluminada pela luz
fraca de um fogareiro, mas quando o homem se liberta e se chega para perto do
Sol, experimenta a verdadeira luz. Esse processo transformador, constitui o que
se chama de conversão mística. O cristianismo adotou o simbolismo da luz,
depois de já o ter feito o judaísmo, por isso que esse símbolo aparece tanto no
Novo como no Antigo Testamento.
Vejamos
o que diz o prólogo, depois de afirmar que todas as coisas foram feitas pelos
Logos. No versículo quarto afirma que o Logos, sendo portador da vida, é a luz
dos homens, e as trevas não prevalecem contra essa luz, que é qualificada como
"a verdadeira luz que vindo ao mundo ilumina a todo homem". Note-se o
pronome indefinido generalizante - todo. O Logos, continua o texto, estava no
mundo, pois este fora criado por intermédio dele, mas o mundo não o conheceu.
Compreende-se que o ego, nossa consciência ordinária, não percebe o próprio
Logos. Daí ter sido necessário que o Logos Divino se materializasse
(encarnasse) para despertar os homens para a sua realidade interior. "A
todos quantos o receberam, complementa o texto no versículo 12, deu-lhes o
poder de serem feitos filhos de Deus". O Logos, portanto, funciona como um
despertador da inteligência divina imanente no homem e produz o surgimento de
uma consciência renovada, o segundo nascimento mencionado no célebre diálogo
com Nicodemus (3,2) que, por sinal, consta apenas do Evangelho de São João.
Jesus de Nazaré, o Cristo, assim como todos os grandes avatares (Sidarta Gautama,
Lao-tsé, Confúcio) desempenham o papel de despertadores da consciência superior
responsável pelo Reino dos Céus, na linguagem simbólica do cristianismo.
Compete ao homem, em seu atual estágio evolutivo, cultivar o Logos que existe
nos estratos mais profundos da consciência de cada indivíduo, se quiser viver
bem. No século passado, o paleontólogo e teólogo francês Teilhard de Chardin
(1881- 1955) sustentou que o Universo caminha para um ponto final de
amadurecimento, o Ponto Ômega, que tem como protótipo o Cristo, o que significa
que um dia a humanidade toda desenvolverá espontaneamente a sua divindade.
A
leitura filosófica do 4º evangelho de modo algum diminui a figura sublime do
Cristo, nem infirma a fé cristã. Apenas interpreta a escritura bíblica, além
dos ditames da religião, visando a uma compreensão mais ampla desse importante
texto da Mística Universal. Não se trata, obviamente, de uma exegese
definitiva, pois o texto, qualquer que seja, está sempre aberto a novas
interpretações.
Por
Sergio Carlos Covello em palestra proferida em 15/08/08
http://www.teosofia-liberdade.org.br/index.php/arquivos/artigos/44-artigos/207-o-prologo-do-evangelho-de-sao-joao.html
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