sexta-feira, 13 de abril de 2012

O Prólogo do Evangelho de São João - Uma possibilidade interpretativa


Hoje vamos tratar de um texto bíblico muito apreciado no Cristianismo e, também, muito controvertido, que é o 4º evangelho, tradicionalmente atribuído ao apóstolo João, o discípulo amado.
Nesse evangelho, tudo pode ser discutido, desde a sua autoria até a historicidade de sua narrativa e  mensagem que pretende transmitir, porque está escrito numa linguagem eminentemente simbólica e mesmo enigmática, sendo por isso chamado de evangelho esotérico. Muitos pesquisadores dizem ser gnóstico esse texto de quase 2.000 anos. Não seria impróprio chamá-lo de teosófico, porque ele se ocupa da origem do Universo (o macrocosmo) e sua relação com o homem (o microcosmo), um assunto muito ao gosto da teosofia. Enquanto os três primeiros evangelhos se harmonizam quanto à vida de Cristo, o evangelho joanino destoa do aspecto biográfico, fazendo um ensaio filosófico sobre a natureza do fundador do Cristianismo e seu papel no Universo como força criadora e regeneradora. Assim, o Evangelho de São João, além de ser um dos pilares da teologia cristã, é um livro que interessa a não-cristãos em busca de uma sabedoria superior ou divina. Por se tratar do mais profundo e elevado dos evangelhos, é representado na iconografia cristã pela águia, a ave que olha mais de perto o sol e simboliza a contemplação e o conhecimento espiritual.
 A obra foi escrita em grego, no fim do primeiro século, muito provavelmente em Éfeso, uma cidade cosmopolita e próspera, situada na Ásia Menor (hoje Turquia), que, na época de Cristo, pertencia ao Império Romano, mas preservava o estilo de vida grego, sendo um foco da filosofia grega, da gnose e das doutrinas herméticas. Em Éfeso, viviam vários adeptos do Cristianismo e muitos judeus helenizados, ao lado de egípcios, persas e fenícios, também helenizados por força do empreendimento expansionista promovido no Oriente Médio, por Alexandre, o Grande, séculos antes.
O grego era, no século 1º, não só língua da cultura e da filosofia, mas também o instrumento de comunicação de comerciantes e viajantes. O próprio cidadão romano instruído dominava esse idioma e adotava a cultura helênica, dada a superioridade da civilização grega. Mesmo quando o latim foi imposto como língua oficial, esse idioma continuou a ter o prestígio como língua das pessoas cultas. Os judeus, dos quais surgiram os cristãos, valeram-se de muitos conceitos gregos em sua doutrina religiosa. E os cristãos seguiram-lhes as pegadas, incorporando muitos helenismos à sua teologia. Não é exagero dizer que a Igreja Cristã é grega, a começar pelo nome - Christos (em gr., o ungido). O discurso cristão está permeado de helenismos - apóstolo, presbítero, batismo, epifania, evangelho, paráclito, carisma, catecismo e tantos outros. Todos os livros do Novo Testamento, com exceção do Evangelho de Mateus, foram escritos originalmente em grego. Em sendo a língua da filosofia, o grego logo se tornou também a língua das religiões e da ciência, além de ser um idioma literário que produziu grandes poetas até hoje lembrados.
Mas, não vamos falar de todo o 4º evangelho, senão apenas dos versículos introdutórios que compõem o prólogo. Primeiro, porque o prólogo faz uma resenha do evangelho, de sorte que compreendo-se o prólogo, não há necessidade de ler o restante da obra. Segundo, porque o prólogo é o trecho mais importante desse evangelho por relacionar o Cosmo, o Cristo e o homem. É tão importante que chegou a fazer parte da missa católica, recitado no fim do culto para a reflexão dos fiéis. Tem a estrutura de um poema, um bonito poema apesar de integrar uma obra de prosa. Supõe-se que o prólogo tenha preexistido ao evangelho como um hino religioso (cristão ou não) que depois foi adaptado pelo evangelista ou por seu editor como introdução solene ao 4º evangelho. Abre com uma afirmação grandiloquente bastante conhecida: " No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus".  Algumas versões da Bíblia em português preferem traduzir: "No princípio era a Palavra e a Palavra estava com Deus e a Palavra era Deus", porque verbo (do latim, verbum) é sinônimo de palavra.
A pergunta que faço é: Será que o verbo ou palavra expressa bem o que o evangelista quis dizer? No original grego, está escrito que no princípio era o Logos, um termo ambíguo de difícil tradução que, no entanto, era usado desde o século 5º a.C, em sentido filosófico de princípio, razão ou lei racional que governa o mundo. Já Heráclito de Éfeso dizia: "Os homens são obtusos com relação ao logos, se bem que tudo aconteça segundo o logos".
Os filósofos estóicos empregaram o termo para designar a razão divina imanente no homem e em todo o universo. Segundo eles, dois princípios regem o Cosmo: um passivo, que é a matéria, e outro ativo, que é a razão divina, a qual atuando na matéria lhe dá qualidade. Sustentavam, portanto, que Deus penetra toda a realidade, incluindo-se a alma humana, de maneira que tudo no Universo é racional, e o homem que quiser viver sabiamente há de seguir a razão, o Logos identificado com a sabedoria eterna ou ordem cósmica.
Ora, o estoicismo predominava no pensamento helenístico do primeiro século, sendo mais que doutrina, uma prática de vida adotada por pessoas das mais variadas crenças, no que tange à moral universalista da igualdade entre todos os homens, ao cultivo das virtudes, à ascese espiritual, à fraternidade humana e à aceitação dos reveses da vida. É de presumir que o evangelista empregou a expressão no sentido filosófico de razão divina e não no sentido de palavra, que é mero elemento lingüístico. Se quisesse referir-se a conjunto de sons articulados, o redator tinha à sua disposição três vocábulos específicos: lalia (fala), phone (som falado) e graphein (som escrito). Por que iria valer-se de um termo metafísico para designar palavra? De certo, o hagiógrafo quis dizer muito mais do que diz o texto latino da Bíblia, adotado como tradução oficial da Igreja.
A tradução de Logos como razão ou mente divina presente no homem casa-se bem com a metáfora da luz mencionada seis vezes no prólogo e outras tantas no corpo do evangelho até a revelação explícita de Cristo, no capitulo 8: "Eu sou a luz do mundo, quem me segue não andará nas trevas, pelo contrario terá a luz da vida". A luz simboliza, de longa data, nas mais antigas culturas como a chinesa, a indiana e a árabe, o conhecimento, a sabedoria, a consciência que percebe com clareza e, portanto, isenta de ilusões. A luz está também relacionada com a experiência mística pela qual o homem amplia a consciência e se transforma em ser divino. Com a alegoria da caverna, Platão diz que no mundo fenomênico os homens estão como que presos em uma caverna iluminada pela luz fraca de um fogareiro, mas quando o homem se liberta e se chega para perto do Sol, experimenta a verdadeira luz. Esse processo transformador, constitui o que se chama de conversão mística. O cristianismo adotou o simbolismo da luz, depois de já o ter feito o judaísmo, por isso que esse símbolo aparece tanto no Novo como no Antigo Testamento.
Vejamos o que diz o prólogo, depois de afirmar que todas as coisas foram feitas pelos Logos. No versículo quarto afirma que o Logos, sendo portador da vida, é a luz dos homens, e as trevas não prevalecem contra essa luz, que é qualificada como "a verdadeira luz que vindo ao mundo ilumina a todo homem". Note-se o pronome indefinido generalizante - todo. O Logos, continua o texto, estava no mundo, pois este fora criado por intermédio dele, mas o mundo não o conheceu. Compreende-se que o ego, nossa consciência ordinária, não percebe o próprio Logos. Daí ter sido necessário que o Logos Divino se materializasse (encarnasse) para despertar os homens para a sua realidade interior. "A todos quantos o receberam, complementa o texto no versículo 12, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus". O Logos, portanto, funciona como um despertador da inteligência divina imanente no homem e produz o surgimento de uma consciência renovada, o segundo nascimento mencionado no célebre diálogo com Nicodemus (3,2) que, por sinal, consta apenas do Evangelho de São João. Jesus de Nazaré, o Cristo, assim como todos os grandes avatares (Sidarta Gautama, Lao-tsé, Confúcio) desempenham o papel de despertadores da consciência superior responsável pelo Reino dos Céus, na linguagem simbólica do cristianismo. Compete ao homem, em seu atual estágio evolutivo, cultivar o Logos que existe nos estratos mais profundos da consciência de cada indivíduo, se quiser viver bem. No século passado, o paleontólogo e teólogo francês Teilhard de Chardin (1881- 1955) sustentou que o Universo caminha para um ponto final de amadurecimento, o Ponto Ômega, que tem como protótipo o Cristo, o que significa que um dia a humanidade toda desenvolverá espontaneamente a sua divindade.
A leitura filosófica do 4º evangelho de modo algum diminui a figura sublime do Cristo, nem infirma a fé cristã. Apenas interpreta a escritura bíblica, além dos ditames da religião, visando a uma compreensão mais ampla desse importante texto da Mística Universal. Não se trata, obviamente, de uma exegese definitiva, pois o texto, qualquer que seja, está sempre aberto a novas interpretações.
Por Sergio Carlos Covello em palestra proferida em 15/08/08
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