terça-feira, 18 de outubro de 2016

ARRANCAR UMA FLOR AFETA UMA ESTRELA DISTANTE


            Um grande sábio disse certa vez que o arrancar de uma flor na terra afeta uma estrela distante. Essa afirmativa poderia parecer improvável, mas é verdadeira e refere-se à unidade inata de toda existência e sua íntima conexão em todos os níveis. Uma harmonia infinita na Natureza estende-se das menores formas de vida, ou microrganismos, aos maiores sistemas estelares e galáxias do universo. Essa ordem natural assegura que cada forma de manifestação de vida tem seu lugar e papel apropriados na evolução da vida até sua plenitude.
            De modo semelhante, o biólogo vienense do início do século XX, Raoul France, afirma que todo o mundo vegetal vive responsivo ao movimento da terra e de seu satélite, a lua, e ao movimento dos outros planetas do nosso sistema solar. Diz, ainda, que será provado que as estrelas e outros corpos cósmicos do universo afetam o reino vegetal. Toda a vida está unida por sutis laços de afinidade, e, portanto, qualquer movimento numa extremidade do espectro afeta a outra extremidade. Os campos mórficos de Rupert Sheldrake fazem eco a esse tema antigo de interconexão, sugerindo que experiências artísticas são realizadas no inconsciente de toda a humanidade.
            Em toda parte, no processo de evolução, há interligação e interdependência entre várias espécies de vida. A acácia, por exemplo, recruta o serviço de proteção de certas formigas e recompensa-as pagando-lhes com néctar pela proteção contra outros insetos e animais arborícolas. Nesse relacionamento entre a acácia e as formigas há um auxílio mútuo e elas mantêm a harmonia da Natureza. As plantas, segundo Raoul France, são capazes de intenção: elas conseguem, de um modo misterioso, esticar-se em direção àquilo que desejam ou buscam. É possível ver esse movimento nos bosques onde plantas espiralam para cima através da mata densa para captar a luz do sol. Para obter o auxílio adequado, elas se enroscam em torno das árvores e crescem juntas.
            As muitas espécies de vida que evoluem na terra agem de acordo com as limitações de suas formas e de seus instintos naturais. Referindo-se à grande inteligência que guia essa evolução A Luz da Ásia afirma:

               Um poder que constrói, destrói, e constrói novamente,
               governa todas as coisas de acordo com a regra.
               Da virtude, que é beleza, verdade, e uso:
               De modo que todas as coisas fazem bem aquilo que serve ao Poder,
               e mal aquilo que atrapalha; ademais, o verme faz bem,
             obediente à sua espécie;
             faz bem o falcão que carrega a presa sangrando para seu filhote.

            Cada espécie comporta-se instintivamente segundo suas necessidades. Quando o leão mata a presa, ele o faz em busca de alimento e não devido à malícia, e uma vez cheio o estômago, não tem razão para matar até a próxima refeição. Existem, no entanto, casos excepcionais no reino animal, de animais comportando-se contrariamente à sua natureza instintiva. Nos parques de caça do Quênia, havia uma leoa que recebeu o nome de 'Kamunyak', que significa 'a abençoada' no idioma Masai, pois ela repetidamente adotava jovens cervos e lhes dava proteção. A leoa não os feria, e eles andavam com ela daqui para ali sem mostrar qualquer sinal de medo. Esse é um exemplo de consciência animal que progrediu muito além de sua espécie, manifestando amor e compaixão.
            Existe uma harmonia natural entre as muitas espécies; assim sendo, elas se auxiliam umas às outras. Por exemplo, algumas variedades de pássaros pousam sobre grandes animais como os rinocerontes e proveem serviço comendo os carrapatos de seus corpos. No seu livro Kinship with all Life, o autor Allen Boone escreve a respeito de experiências humanas com animais e diz que é possível estabelecer genuíno relacionamento com eles. Num experimento particular, o autor registra sua extraordinária experiência com uma mosca doméstica com a qual foi capaz de estabelecer comunicação. Ele diz: 'Se você quiser aprender o segredo do reto relacionamento, procure apenas o bem, que é o divino, nas pessoas e nas coisas, e deixe o restante para Deus'.
            O professor J. C. Bose, o grande cientista do século XIX, citando os antigos sábios da Índia, disse com relação a isso: 'Aqueles que veem apenas o Um em todas as multiplicidades cambiantes deste universo pertencem à Verdade Eterna – e a ninguém mais, e a ninguém mais'. Como disseram os antigos sábios da era dos Upanishades, em seus escritos, a Natureza sussurra-nos de muitas maneiras e através de muitos meios. O cultivo da sensibilidade para se experienciar a vibração e a harmonia da vida é a estrada que leva à percepção. A consciência humana perdeu muito de sua sensibilidade sob a influência do materialismo.
            Existe um relato interessante da resposta dada pelo Chefe Indígena Seattle ao governo dos EUA quando este se ofereceu para comprar as terras da tribo. Ele respondeu:

               Nós somos parte desta terra e ela é parte de nós. As flores perfumadas são nossas irmãs;
               o veado, o cavalo, a grande águia, estes são nossos irmãos. Os cumes rochosos, os sulcos nos
               prados, o calor do corpo do pônei e do homem – tudo pertence à mesma família.
               Os rios são nossos irmãos, eles mitigam nossa sede. Os rios transportam nossas canoas, e
               alimentam nossos filhos. Se vos vendermos nossa terra, deveis lembrai-vos de ensinar a vossos
               filhos que os rios são nossos irmãos, e vossos; e deveis doravante dispensar aos rios a gentileza
               que dispensaríeis a qualquer irmão.

            Nessa mensagem do grande Chefe é sugerida uma maneira de vida na qual existe harmonia com toda a existência e percepção da beleza da Natureza. Uma reflexão sobre nossos valores atuais indica que estamos muito distanciados da harmonia da Natureza e consequentemente, há muito sofrimento no mundo. O uso excessivo que atualmente se faz dos recursos da Natureza alcançou níveis tão perigosos que seu frágil equilíbrio está ameaçado. A perversão começa com a raça humana que, por sua ganância e por seu, egoísmo, é responsável pelo estado em que a terra, sua vegetação e as várias outras espécies de vida, se encontram.
            O princípio de Fraternidade Universal sem qualquer distinção, não apenas como um ideal pelo qual se deve aspirar, mas como uma realidade na Natureza, precisa ser compreendido. A afirmação de que 'o arrancar de uma folha afeta uma estrela distante' põe em foco a responsabilidade que assumimos por todas as nossas ações. Será que nossas ações contribuem para a criação de harmonia ou de desarmonia no mundo? O estado de percepção faz brotar as sutis motivações da mente.
            A mente humana divide e diferencia entre o que ela identifica como o eu de um lado, e os outros de outro. Ela acentua e perpetua as diferenças, em vez de ver a unidade inerente da existência. A percepção permite à pessoa observar suas (da mente) verdadeiras operações.
            O precondicionamento da mente faz com que o processo de pensar funcione ao longo de sulcos pré-estabelecidos. Ela categoriza e diferencia de muitas maneiras. Ao lidar com outras pessoas, introduz a separação com base em casta, credo, e assim por diante. Ela também funciona com autoimportância, depreciando os outros como não sendo importantes. O movimento na mente é tão sutil que, a não ser que a pessoa desenvolva atenção e percepção, não é notado. Ela possui habilidade para convencer que está livre de qualquer tipo de distinção como raça, religião, sexo etc., mas a observação atenta põe em foco as motivações por trás de suas ações. O eu se manifesta de muitas maneiras ao lidar com o mundo ao seu redor. Com a percepção surge a aceitação de que as distinções existem na mente e que têm de ser enfrentadas.
            Krishnamurti afirma que somos responsáveis pelo estado em que o mundo se encontra porque pensamos em termos de raça, religião, casta etc. O indivíduo torna-se responsável pelos problemas enfrentados pelo mundo. Por nossas ações enviamos ondulações através do universo e perturbamos a harmonia quando elas não são de auxílio. É, portanto, um truísmo que o arrancar de uma flor afete uma estrela distante. Quando olhamos para as muitas questões que a humanidade geralmente enfrenta, deveria surgir em nossas mentes a pergunta quanto à nossa responsabilidade em contribuir para tais problemas. Certa vez na Índia perguntaram a Krishnamurti sobre a verdadeira causa da morte prematura do Mahatma Gandhi. Sua resposta foi:

               Os eventos mundiais não são incidentes sem relação entre si; estão relacionados. A verdadeira
               causa da morte de Gandhi está em você. A verdadeira causa é você. Pelo fato de ser comunalista,
               você encoraja o espírito de divisão através da casta, através da ideologia, através das diferentes
               religiões, seitas, líderes.

            Aqui estão resumidos alguns dos problemas que se opõem ao espírito de Fraternidade Universal. A reflexão profunda certamente trará à nossa atenção muitas dessas condições das quais sofremos todos. A estrada que leva à percepção é reconhecer essas tendências dentro de nós e negá-las, dissociando-nos delas. Os objetivos da Sociedade guiam-nos com clareza.
            Outra importante questão com que se depara a humanidade é sua total alienação da Natureza. Certamente que a fraternidade a que nos referimos não está restrita apenas aos seres humanos. Se os animais, as árvores e outras formas de vida não forem considerados de maneira compassiva, então, a verdadeira fraternidade não existe.
            A Mãe Natureza não tem recebido a consideração devida da raça humana. A derrubada de enormes áreas florestais, a mineração excessiva, a poluição de rios e mares resultaram na extinção de muitas formas de vida. A harmonia da Natureza é perturbada e como consequências resultantes temos mudança de clima, tsunamis e terremotos.
            Estarão os valores da sociedade moderna baseados puramente no progresso material? Os seres humanos foram condicionados a acreditar que cada vez mais bens materiais são desejáveis e que isso lhes trará felicidade. No entanto, não é bem assim, como muitas pessoas descobriram após muito sofrimento. A competição excessiva que influencia muitas pessoas e faz com que aspirem por cada vez mais riqueza não traz em seu bojo nem a felicidade nem o contentamento.
            Existe a necessidade de se reavaliar os valores da sociedade materialista atual e reverter a um modo mais natural de vida que permitiria ao homem religar-se à Natureza. O Chefe Indígena Seattle expressou a realidade do moderno modo urbano de viver quando disse que não havia lugar na cidade para se ouvir o som das folhas que se abrem na primavera, ou o som do zumbido das asas dos insetos. O ruído e a tagarelice da vida moderna alienam o homem da Natureza.
            A apreciação da beleza inata da flor, do rio, da montanha etc. restabelece elos com a Natureza. Existe uma bela história de um escultor de uma aldeia já acostumada com o cinzelar, o martelar e o desbastar. Mas certo dia foi diferente. No lugar de um enorme bloco de pedra, havia agora uma deusa viva, bela e brilhante, banhada na luz suave do sol matinal. Os aldeões estavam maravilhados e surgiu a pergunta: Como você sabia que ela estava escondida aí dentro?' O escultor sorriu com um olhar distante e disse: 'Porque eu a via aí dentro'.
            Perceber a vibrante energia oculta, o desabrochar da consciência, nos animais, nas plantas e até mesmo nas pedras, aparentemente inertes e inconscientes, é a estrada que leva à percepção. Compreender os modos infinitos de expressão da Natureza e ver a consciência manifestando-se em tudo é harmonizar-se com toda a vida.

Autor: Bhupendra R. Vora

Extraído de: The Theosophist – Nov. 2010 – Publicado na revista TheoSophia
Tradução: Edvaldo Batista de Souza, Loja Kut Humi, Salvador, BA
Fonte:http://lojateosoficadharma.blogspot.com.br/2016/01/arrancar-uma-flor-afeta-uma-estrela.html

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

O CAMINHO DO DHARMA


“Na cidade de Svatthi, no norte da Índia, Buda mantinha um grande centro onde as pessoas vinham meditar e ouvi-lo discorrer sobre o Dharma.
            Todas as noites, um jovem aparecia para ouvir suas palestras. Durante anos ele apareceu para ouvir as pregações de Buda, mas nunca colocou em prática qualquer dos ensinamentos recebidos.
Até que certa noite, chegando um pouco mais cedo, encontrou Buda sozinho. Aproximando-se, interpelou-o:
-Senhor, tenho uma pergunta que fica surgindo em minha mente e provocando dúvidas.
-Oh? Não deve haver dúvidas no caminho do Dharma. É preciso esclarecê-las. Qual é sua pergunta?
- ‘Senhor, há muitos anos que venho ao seu centro de meditação, e reparei que há um grande número de reclusos ao seu redor, monges e freiras, e um número ainda maior de leigos, homens e mulheres. Alguns deles vêm aqui há anos e posso ver com clareza que alcançaram o estágio final: é bastante óbvio que se encontram plenamente libertos. Posso ver também que outros experimentaram uma certa mudança em suas vidas.’
‘Também eles se liberaram. Mas, senhor, também noto que há um grande número de pessoas, dentre as quais eu me incluo, que permanecem como eram, ou estão talvez piores. Não mudaram em nada, ou não mudaram para melhor. Por que há de ser assim, senhor? As pessoas vêm procurá-lo, um grande homem, plenamente iluminado, um ser poderoso e compassivo. Por que o senhor não usa o seu poder e a sua compaixão para liberá-las todas?
Buda sorriu e perguntou:
-Meu jovem, onde você mora? Qual é sua terra natal?
-Moro aqui em Savatthi, senhor, capital do estado de Kosala.
-Sim, mas seus traços mostram que você não é desta parte do país. De onde veio? Onde nasceu?
-Sou da cidade de Rajagaha, senhor, capital do estado de Magadha. Vim para cá e me estabeleci em Savatthi há alguns anos.
-E rompeu todas as ligações com Rajagaha?
- Não, senhor, ainda tenho parentes lá. E amigos também. Faço negócios em Rajagaha.
-Então com certeza deve ir e vir de Savatthi para Rajagaha com bastante frequência?
-Ah, sim. Várias vezes por ano eu visito Rajagaha e retorno a Savatthi.
-Tendo ido e voltado tantas vezes, tendo percorrido tantas vezes o caminho daqui a Rajagaha, você conhece bem o percurso.
-Sim, senhor. Conheço a estrada perfeitamente. Diria até que com os olhos vendados eu poderia achar o caminho para Rajagaha, tantas vezes eu percorri.
-Deve acontecer então que as pessoas lhe procuram para que lhes explique como chegar daqui a Rajagaha. Você esconde alguma coisa delas ou explica-lhes o caminho sem evasivas?
-O que haveria de esconder senhor? Eu explico o mais claramente possível: comece caminhando para leste e siga em direção a Varanasi, continue caminhando até chegar a Gaya e em seguida a Rajagaha. Explico-lhes o caminho de maneira a não deixar dúvidas.
-E essas pessoas a quem você dá explicações tão claras, todas elas chegam a Rajagaha?
-Como poderiam, senhor? Somente aquelas que percorrerem todo o caminho até o fim é que chegarão a Rajagaha.
-É isso que eu quero lhe explicar, meu jovem. As pessoas vêm a mim sabendo que sou alguém que já percorreu o caminho daqui até o Nirvana e sabendo que o conheço bem. Eles vem a mim e perguntam: ‘Qual é o caminho para o Nirvana e a libertação?’ Eu explico claramente: ‘Este é o caminho’. Se alguém apenas abana a cabeça e diz, ‘Bem dito, muito bem dito, um excelente caminho, mas não vou dar um passo nele: um caminho excelente, mas não vou me dar ao trabalho de percorrê-lo’, como essa pessoa poderá atingir o destino final?
Eu não carrego ninguém nos ombros até o destino final. Ninguém pode carregar ninguém nos ombros ao destino final. No máximo, com amor e compaixão, é possível dizer, ‘Bem, este é o caminho e é assim que eu o percorro. Se você também caminhar, certamente atingirá o destino final’.
Mas cada pessoa deve percorrê-lo por si, deve dar cada um dos passos ao longo do caminho por si. Aquele que deu um passo no caminho está mais próximo do destino. Quem deu cem passos, está cem passos mais próximo. Quem deu todos os passos do caminho atingiu o destino final. Mas cada um tem de percorrer o caminho por si mesmo.”

Fonte: http://lojateosoficadharma.blogspot.com.br/2016/01/o-caminho-do-dharma.html

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

NO OLHO DA TEMPESTADE


No primeiro capítulo do Bhagavadgita, Sanjaya, o narrador, descreve o que se assemelha a um estrondo incrivelmente alarmante e ensurdecedor, quando os dois exércitos preparava-se para a batalha. Nas próprias palavras do texto, ‘conchas, clarins, tambores, surdos e cornetas subitamente soaram juntos, e o som era terrível’. Sanjaya continua a descrição da cena, com todo ruído envolvido, e acrescenta: “Este barulho tumultuoso se apodera dos corações dos filhos de Dhrtarashatra, enchendo céu e terra com seu som”. Tão vívida é a descrição que recebemos, que quase podemos ouvir com nossos ouvidos físicos a terrível cacofonia do som, e sentir dentro de nós o terror do conflito que se aproxima.
            Hoje parece que o mesmo tumulto de som nos ataca, quer literalmente das planícies do Iraque ou, em sentido figurado, dos mercados comerciais e econômicos do mundo. As nuvens de tempestade estão sobre nós e nos sentimos tão temerosos e ansiosos como Arjuna, trêmulos e indecisos, tão confusos e desnorteados como esse representante da condição humana frente ao que parecem ser forças demoníacas soltas no mundo. Há mais de um século o poeta inglês Matthew Arnold descreveu isto muito bem:

         E aqui estamos, como numa sombria planície
Varrida por alarmes confusos de luta e movimento,

Onde à noite se batem exércitos ignorantes.
            Embora não pretenda continuar num estudo do Gita, no capítulo inicial desta bela obra, um ponto merece nossa atenção e nos conduz diretamente ao assunto que desejo tratar. Enquanto Arjuna, tremendo de medo pela visão e o som que o dominam, ainda assim ordena a seu cocheiro, o divino Krishna, levá-lo ao centro do campo entre os dois exércitos adversários. Diz ele: ‘Coloque meu carro no meio, entre os dois exércitos’. E, ao ordenar esta ação a Krishna, Arjuna se dirige a ele como ‘Achyuta’ reconhecendo-o assim como o centro interno ‘imóvel e imutável’ representado por Krishna.
            Por isso sugerimos que a verdadeira e urgente necessidade de nossos dias, para todos  nós colhidos pelo som e pela fúria de nossa atual situação, é nos movermos para o centro e aí ‘estacionar’ nosso carro, porque somente no centro podemos começar a observar a esfera total de ação da existência. Somente quando o veículo que usamos, o eu pessoal, é conduzido a um estado de quietude – parado no centro – estaremos na posição de compreender qual é a ação correta. Identificar-se com um lado ou outro do conflito que turbilhona sobre nós, estar no redemoinho dos ventos da fortuna, correr de um lado para outro buscando soluções externas, puxados e empurrados pelas tempestades da paixão, é agir cegamente sem razão – e certamente sem compreensão das profundas raízes da presente crise que nos aflige. Quando o mundo está em chamas, quando todas as trombetas da miséria humana estão soando, o que se exige é movimento, não uma postura de quietude. Não há tempo para uma tranqüila observação de qualquer centro, mesmo se pudéssemos encontrá-lo. A tempestade está desencadeada; devemos agir!
            Mesmo assim, façamos uma pausa. Numa saliência sobre minha escrivaninha há uma pequena e bela estátua de bronze de Krishna na posição tradicional tantas vezes representada, seu peso descansando levemente sobre uma perna, a outra perna cruzada na frente, os dedos dos pés tocando levemente o solo. Ele está tocando o mais delicado de todos os instrumentos, a flauta, que dificilmente produzirá o som que abafará o ruído das trombetas e tambores. Sua face mostra uma expressão de completa tranqüilidade, de inefável paz. Há – ou assim me parece – um sentido de ação no meio da não-ação. Além do tumulto e fúria da tempestade, há a doce música, pura e agradável da flauta acalmando o ruído do mundo.
            Qual a lição da pequena estátua de Krishna? E qual é o significado da necessidade de Arjuna de se colocar no centro, entre os exércitos prestes a combater? Talvez para nós seja hora de considerar o valor de estar no centro de nosso ser, onde o veículo que usamos a cada dia – a personalidade – deve ficar, controlada nem que seja por um momento, para que possamos ouvir a voz do imutável. Aí poderemos achar o segredo da ação correta – o ‘segredo real’ como o Gita o chama – pelo qual o mundo está buscando tão desesperadamente. Nestes ciclônicos tempos, quando tudo que parece seguro está sendo varrido por tempestades que rugem sobre nós, podemos lembrar – para mudar a metáfora de batalhas para ciclones – que no olho de toda tempestade há completa calma. Aí certamente, pelo menos em sentido figurado, é onde deve estar o teósofo: no centro quieto e tranqüilo. E como o sábio taoísta, poderemos compreender ‘a graça de existência e o uso da não-existência’, citando o paradoxo que indica o tipo de ação que surge natural e espontaneamente da não-ação no centro imutável do ser. Citando uma tradução do belo texto do Tao-Te-Ching:

        Trinta raios convergem para o cubo da roda:
É onde está o não-ser, (o espaço vazio)

Onde está a utilidade da roda.

Do barro se molda um vaso:

É onde está o não-ser,

Onde está a utilidade do vaso.

Portas e janelas são moldadas ao construir uma casa:

É onde está o não-ser,

Onde está a utilidade da casa.

Sendo assim, quando o ser é valorizado,

É o não-ser que tem utilidade.
            Devemos perguntar se isto significa que devemos cessar de ser, tornar-nos nada, um zero em existência? Ou isto indica – como na realidade Arjuna descobriria – um novo modo de ser no qual a ação se origina de um centro sem ação? Talvez a mais elevada forma de ação, a ação correta e verdadeira seja, num paradoxo, não tanto uma ação como uma presença. Citando novamente o Tao:

        Retornar à origem significa quietude;
Quietude significa renovação da vida.
            Assim falou Lao Tze sobre o pré-requisito essencial para uma vida significativa: ‘Mantenha a quietude em todo seu ser’. É esta quietude que é representada tão perfeitamente na pequena estátua de Krishna, uma quietude que era realmente necessária a Arjuna para ouvir os ensinamentos dados por seu cocheiro, a quietude tão sucintamente expressa pelo salmista Davi, na completa simplicidade de sua oração, ‘Fique tranqüilo e saiba que eu sou Deus’. O poeta T. S. Eliot falou desta quietude como ‘o ponto imóvel no mundo que gira’, e o poeta místico irlandês AE o descreveu como ‘este centro dentro de nós através do qual todos os fios do universo são puxados’, um centro completamente imóvel e que ainda serve como um espelho para todos os acontecimentos.
            É muito fácil agir impetuosamente, muito fácil lançar-se apressadamente em atividade com a excitação da paixão para fazer o melhor porque nos importamos tanto pelo bem-estar do mundo. Podemos até ter algum sentimento de culpa se pararmos por alguns momentos, quando todos a nosso redor se desgastam com excesso de tarefas, envolvidos numa atividade infindável de ‘fazer o bem’ como chamamos estas atividades. Especialmente como teósofos, podemos sentir algumas agulhadas na consciência quando, como acontece freqüentemente, nos perguntam ‘o que vocês fazem para amenizar o sofrimento da humanidade? E então, para livrar nossa consciência indicamos as inúmeras atividades da Ordem Teosófica de Serviço – OTS, ou o trabalho individual de alguns membros em diversas áreas.
            Ora, não estou sugerindo que não façamos nada, ou que sentemos em constante contemplação do vazio seja preferível à ação altruísta. Certamente nunca nos aconselharam a voltar as costas a ações que beneficiem os outros, (inclusive os chamados ‘irmãos mais novos’, dos reinos animal e vegetal). Em vez disso devemos propor que a filosofia teosófica dê uma dimensão acrescida ao significado da ação, por que indica claramente uma maneira de viver no mundo, que pode ser definida como o caminho do serviço através da presença. Isto é, nossa simples presença influencia de tal maneira o mundo a ponto de transformá-lo, ou ajudar a realizar essa profunda transformação da consciência, a única solução definitiva para os problemas da humanidade. Essa vida é aquela vivida no centro, ou formar o centro no olho da tempestade. Deste centro brota uma emanação de paz, amor, compaixão e compreensão.
            A psicologia atual reconhece que uma enorme multidão pode ser arrastada num redemoinho por uma única e poderosa pessoa. A história está cheia de registros destes indivíduos, cuja turbulência e excitação acenderam paixões e delírio de todos a seu redor: Genghis Khan, Rasputin, Hitler, etc., a lista é quase infindável. Da mesma forma a psicologia reconhece a influência do indivíduo correto, internamente integro e harmônico que cria um centro de calma externa. A história nos fornece exemplos e ‘grandes homens’, cuja grandiosidade estava em suas maneiras de agir no mundo: desde Krishna a Cristo, santos e salvadores, os sábios, os ‘despertos’(Buddha-s), que desde tempos imemoriais visitaram a humanidade e continuam a nos instigar a encontrar o centro e aí permanecer.
            Há uma história antiga de dois homens que aravam seus campos, uma história que ilustra o que quero dizer. A terra era pedregosa e o tempo mau, faltara chuva e o rio que a irrigava estava seco. Enquanto cavavam seus sulcos, um deles tinha a boca fechada e os olhos fixos. Pensava apenas na dureza de sua vida, na dor de seus pés e de suas pernas. Maltratava seu magro cavalo que não queria andar depressa. Olhando para o companheiro, concluiu que seu cavalo era mais ágil, que seu trigo deveria estar mais alto e granado do que o seu, e que a terra desse homem era mais fácil de arar. Enquanto isso, seu vizinho trabalhava com ritmo e harmonia, concentrando-se em como fazer seus sulcos retos, parando aqui e ali para descansar sua égua. Parecia tranqüilo, sem pressa nem cansaço. Com o calor do sol aumentando, o primeiro batia mais ainda em seu cavalo; o suor banhava sua face e pingava em seus olhos deixando-o quase cego; as veias de suas mãos inchavam quando ele empunhava seu arado. Ele pensava apenas que seu vizinho zombava dele, fazendo seu trabalho lentamente, com a mesma calma em seu rosto. Sua raiva foi num violento crescendo e em sua cabeça repetia-se um refrão: ‘Se eu tivesse seu cavalo poderia cavar duas vezes mais rápido.se eu tivesse seu lote não seria tão difícil arar’. Finalmente em desespero, ele jogou para o lado seu arado, pegou a maior pedra que encontrou e com um grito selvagem correu com ela pelo campo em direção a seu vizinho. No dia seguinte, o outro camponês estava arando seu campo, mas ele agora usava dois cavalos. Mesmo assim, andava mais devagar por estar triste e intrigado com lembrança do dia anterior, quando, surpreendido pelo grito selvagem, viu seu vizinho vir em desabalada corrida, com o braço esticado para jogar-lhe uma enorme pedra. Mas antes que pudesse reagir, viu seu vizinho cair morto a seus pés, ainda agarrando a enorme pedra. Até o dia de morrer, esse homem nunca pôde entender o que se passara na mente de seu vizinho, nem como surgira sua violência selvagem repentina.
            A raiva e a paz são qualidades pessoais que nascem nos fascinantes locais secretos da mente e do coração. Não é suficiente dizer que estes dois homens neste antigo relato tinham estados diferentes de mente e deixar isto por isso mesmo. É muito claro que a diferença entre eles estava num certo nível mais profundo, que atingiu a consciência de um centro que, na realidade, é comum a todos nós. Num caso, o efeito na consciência foi através da mente focada no auto-interesse, na ganância, na inveja e no desejo; no outro caso, a mente estava calma, resoluta, cuidando do animal, da terra e do trabalho a ser realizado. Perguntamos então, será possível cultivar os valores que emergem desse profundo centro dentro de nós, para nos capacitar a ser uma presença de paz no mundo, uma presença que irradie calma e encoraje a criatividade do espírito? É possível desembaraçar nossa natureza psicológica de tudo que produz conflito e violência, permitindo o livre fluxo de energia desde esse centro interno de nosso ser, esse centro comum a todos e à ninguém em especial, e mesmo assim singular em cada vez que opera num indivíduo? Já que Atman – se quisermos designar esse centro – é na verdade universal, e portanto comum a todos; ainda assim, em cada indivíduo se revela sua singularidade de expressão.
            Todos os textos antigos nos dizem que é possível desembaraçar-se de nossa natureza psicológica. O processo é descrito nas escrituras ióguicas e místicas em todas as tradições religiosas, e nos sistemas psicológicos atuais que enfatizam o individualismo, a auto realização e a transformação num nível transpessoal. Na mais bela e verdadeiramente singular de todas as obras de H. P. Blavatsky, A Voz do Silêncio, o processo de desembaraço que produz o tipo de iluminação na qual o indivíduo tona-se, não apenas auto-iluminado, mas um genuíno doador de luz ao mundo, é chamado de ‘a senda paramita’, em terminologia budista, e descreve os sete portais através do quais o aspirante deve passar em sua jornada para o centro.
            Por vezes designadas como ‘virtudes transcendentais’, as paramita-s são qualidades de existir neste centro. Elas estão essencialmente presentes nesse espaço interior ao que podemos chamar de ‘olho’ de nossas tempestades pessoais externas, porque quando chegamos nesse espaço interior – esse centro, esse ‘olho’- as tempestades externas cessam, surge o sol de nosso ser que dispersa até mesmo as nuvens mais sombrias e ameaçadoras. Os textos budistas mahayana enumeram seis ou dez paramitas, ‘virtudes’ ou ‘perfeições’, que devem ser praticadas no caminho do Bodhisattva, a senda da compaixão. H. P. Blavatsky menciona sete, chamando-as de ‘chaves douradas’ que abrem os ‘portais do caminho espinhoso para jnana’ ou sabedoria. Da mesma maneira na Voz do Silêncio estas ‘excelsas virtudes’ são mencionadas como:

        Dana, a chave para a caridade e amor imortal.
Sila, a chave para a harmonia de atos e palavras, a chave que equilibra causa e efeito, e não dá espaço para a ação kármica.

Kshanti, a suave paciência, que nada pode perturbar.

Viraga, a indiferença ao prazer e à dor, o domínio da ilusão, que percebe apenas a verdade.

Virya, a destemida energia que abre caminho do lamaçal das falsidades terrestres até a sublime verdade.

Dhyana, cujas douradas portas conduzem o Naljor ao reino do eterno Sat e à infindável contemplação.

Prajna, a chave que transforma um homem em deus, tornando-o um Bodhisattva, filho dos Dhyani-s.
            Muitos bons e úteis comentários foram escritos acerca destas qualidades sublimes, mas vamos abordá-las considerando como elas podem nos livrar dos maiores grilhões que afligem nossa natureza psicológica – complicações que causam nossas tormentas pessoais. Através da prática destas belas virtudes podemos começar o processo de desatar os nós que nos limitam, nos livrando do envolvimento na confusão e caos que parecem caracterizar nosso mundo contemporâneo. Em conjunto, as paramita-s tornam-se uma maneira de viver desde o centro.
            Hoje a humanidade (e nós como indivíduos) parece estar dominada pela cobiça e pela paixão, apego à riqueza, a posses, à posições e ao poder. Estes são os primeiros dos grandes grilhões que nos mantém enredados na rede da auto-estima, do auto-interesse. Somente a realização, o pleno conhecimento de que a vida é una, indivisa, um todo que em essência ‘ prajna ou sabedoria, pode nos livrar do sentimento de separatividade que promove a cobiça e o próprio interesse. E com esta compreensão surge espontânea e naturalmente uma verdadeira caridade de espírito, dana, uma doação genuína de tudo que somos ao serviço de tudo que vive. É a atitude indicada em dos Upanishad-s: ‘O marido é valioso, não pelo bem do marido, mas pelo bem do Eu é o marido valioso’. ‘A esposa é valiosa, não pelo bem da esposa, mas pelo bem do Eu é a esposa valiosa’. E o texto continua com outros relacionamentos; tudo é valioso apenas ‘pelo bem do Eu’, o Uno que está no centro de todos os seres. Assim é que aprendemos a agir com um espírito de verdadeira universalidade, por nossa conscientização da unidade; assim todo pensamento, sentimento e ação está baseada nesta conscientização e portanto está cheia de amor e cuidado pela preciosidade da vida. Cada ação, sem mácula pela preocupação com o eu pessoal, brota da não-ação no centro de nosso ser.
            A segunda maior aflição que nos prende e embaraça, causando miséria e infelicidade no meio das tempestades da existência, são nossas antipatias, nossas animosidades e ciúmes, o gostar e o desgostar que brotam deste sentimento do eu separado. É o mal universal que envenena tantos relacionamentos, enraizado em nossa auto preocupação e na incapacidade para reconhecer a realidade da vida una. Alimentando nosso próprio interesse, não vemos como agir em conformidade e cooperação com as inexoráveis leis da natureza, rechaçando o espírito de discórdia e resistência. E a contemplação interna da vida una, dhyana, nos faz reconhecer que há apenas uma lei, que é ‘a chave da harmonia na palavra e na ação’, sila. Então nossa conduta será baseada na grande lei da causalidade, karma, e sempre agiremos deste centro interno de calma com uma desanuviada percepção espiritual.
            Subordinado à nossa ganância e desejo, a nossos gostos e repúdios, está o terceiro grande impedimento, a ilusão que nasce da ignorância de quem somos realmente, o fracasso em discernir entre o real e o irreal, entre o verdadeiro e o falso. Assim como dana e prajna, bem como sila e dhyana formam pares complementares, assim também, ao nos livrarmos do terceiro impedimento, as duas virtudes kshanti e virya podem estar relacionadas. A essência da paciência, coragem e calma, que é kshanti, requer a energia destemida de virya para sua prática continuada. É kshanti que dá coragem ao coração vacilante do aspirante e aquele que a possui se deparará com todas as tentações, todos os fracassos e desapontamentos com a confiança que brota de uma vontade suave e persistente, com a coragem da alma que é a verdadeira virya. Já que virya tem finalidade, é determinação unidirecional, é a estabilidade de coração e mente que conduz o indivíduo ao triunfo derradeiro. Este sabe que certamente ‘cada fracasso é sucesso, e cada tentativa sincera trará mais tarde sua recompensa’, nas palavras da Voz do Silêncio. Assim aprendemos a ir além dos obstáculos causados pela ilusão para o reino da luz, ao centro, onde não existe a ignorância, onde a ansiedade pelo futuro e as lamentações do passado não mais nos atingirão.
            Todos nós temos um anseio quase insaciável por coisas para o eu pessoal, quer seja por coisas físicas, por capacidades psíquicas ou por qualidades espirituais. É o anseio que parece ‘roer’ os outros na busca constante por algo mais, mesmo quando não possamos definir esse ‘mais’ que desejamos ter. Esta busca inevitavelmente nos limita, nos prende ainda mais firmemente ao sentimento do ‘eu’. Desta maneira balançamos entre os opostos de prazer e dor, buscando um e evitando o outro, vivendo continuamente as tormentas do querer e do não querer. Mas esta quarta limitação pode diminuir quando começamos a praticar esta simples virtude que é a chave da porta central, ‘a porta do equilíbrio’, viraga. Nas palavras de Helena P. Blavatsky, é ‘a indiferença ao prazer e à dor’, talvez uma melhor definição fosse equanimidade, uma aceitação imparcial para tudo que a vida nos traga. É um equilíbrio interior, encontrado somente quando vivemos no centro, onde o Ser é Uno, e não no meio de tormentas de desejos e paixões pessoais. No centro há liberdade para quem puder aceitar igualmente alegria e tristeza.
            Viver no centro, viver no olho da tempestade onde há completa calma, e por estarmos no mundo tornar-nos um ponto que irradia luza: certamente isto é o ideal, embora sua realização completa esteja no futuro. Embora com passos vacilantes, agora podemos iniciar o caminho das paramita-s e desta maneira soltar os grilhões que nos mantém presos a nosso próprio disfarçado sentimento de um eu pessoal. A Voz do Silêncio com tanta beleza expressa o ideal e a possibilidade de caminhar para ele:
            “Segue a roda da vida; segue a roda do dever com a nação e família, a amigos e inimigos. Se não podes ser o sol, sejas então o modesto planeta. Sim, se não puderes brilhar como o sol do meio-dia sobre o cume da montanha de eterna pureza, escolhe então, Ó neófito, um caminho mais modesto.

            Indica o caminho - nem que esteja escondido, perdido na multidão – como faz a estrela polar para os que caminham na escuridão. Dá luz e conforto ao cansado peregrino, e descobre quem sabe ainda menos do que tu.’

            Isto é o que é necessário, porque começar seja tudo que nos é pedido. Ainda assim, não começar, porque as condições ciclônicas do mundo em desordem parecem demasiado pesadas para que nossos pequenos esforços façam diferença, pode nos levar não somente ao fracasso, mas a trair tudo o que recebemos. Pois ‘cada fracasso é sucesso e cada tentativa sincera recebe em tempo sua recompensa’.
            Quando observamos nossa atual posição e o desafio que se nos apresenta pelas tempestades que rugem sobre nós, podemos parar um momento e considerar o movimento que sempre é possível para qualquer um de nós: o movimento para dentro, para o centro, onde mora a paz. Ou, usando outra imagem, observar o momento fugaz do alvorecer antes que comecem as frenéticas atividades do dia, como o descreveu a escritora inglesa Jacquetta Hawkes, em seu livro A Terra:
            “Com absoluta tranqüilidade a terra gira em seu eixo a algumas milhas por hora, e ao redor do sol com onze mil milhas por minuto; a terra, a estrela polar e o sol ainda invisível estão girando suas calotas a meio milhão de milhas por hora. Nem uma folha se mexe. Somente o canto do pássaro quebra a quietude do alvorecer.’
            O movimento dentro do centro, ouvindo o canto do pássaro ao alvorecer, na quietude que se encontra somente no centro, no ‘olho’ do furacão: este é o caminho que devemos seguir na antiga jornada que leva ao verdadeiro coração do universo. E do centro, nos movermos novamente para fora, mas agora para viver de maneira diferente, porque trazemos a todas as ações externas o silêncio imóvel do Uno, do sempre presente Ser. Como se a quietude do alvorecer permeasse com seu frescor cada hora de nossos atarefados dias.”

Joy Mills foi uma educadora. Presidente da Sociedade Teosófica nos Estados Unidos entre os anos de 1965 e 1974 e depois, vice-presidente internacional da ST com sede em Adyar, na Índia entre os anos de 1974 e 1980. Premiada com a medalha Subba Row em 2011 por suas contribuições à literatura Teosófica.
Foto: “Olho de Deus” ou “Maternidade”. São os dois nomes atribuídos a esta imagem de Sean R Heavey,um caçador de tempestades que mora em Glasgow, Montana.



sexta-feira, 7 de outubro de 2016

TEMPLO E LOJA


       A diferença entre Templo e Loja na maçonaria, parece a princípio uma questão simples. Como dito no Manual de Instruções Maçônicas do  Aprendiz, Templo é o lugar onde se realizam os trabalhos maçônicos e onde se reúne a Loja, que é a manifestação do Logos ou verbo, individualizado em cada um de seus componentes e generalizado ou “universalizado”, harmonicamente, no conjunto. Neste mesmo texto há o alerta de não se confundir Templo e Loja. Templo é o prédio, o lugar físico no qual se reúnem os membros de uma Loja. Loja é o conjunto dos maçons que se reúnem no Templo, em recinto consagrado aos seus trabalhos. De uma maneira direta e metafórica acho que se poderia dizer que Templo é o corpo e Loja a alma e a mente. Mas a relação entre as duas definições é mais profunda e complexa. Rica em sua descrição e elaboração, a simbologia do Templo é forte e com propósitos significativos e divinos,  tão magística e cuidadosamente proposital, seu entrelaçamento e simbiose com a Loja são tão profundos que não se resume a uma simples definição de que um é o espaço e o outro a idéia, é muito mais do que isso.

       O Templo reproduz simbolicamente, quatro esferas ou mundos: 
1.  Mundo das emanações. Plano divino. Esfera intelectual. Corresponde ao Oriente do
Templo
2.  Mundo da criação. Plano astral superior. Esfera da alma racional. Correspondente, no
Templo, à metade da área, que vai do oriente ao altar do 2º Vigilante.
3.  Mundo da formação. Plano astral inferior. Esfera da alma vital. Corresponde, no
Templo, à metade inferior de sua área, que vai do altar do 2º Vigilante à porta entre
colunas.
4.  Mundo físico, dos fenômenos. Esfera da natureza formal, plástica e do corpo.
Corresponde, no Templo, ao vestíbulo ou sala dos Passos Perdidos, e ao mundo
profano. 

       É no Templo que o Aprendiz passa a trabalhar, desde que se emancipou do mundo formal ou dos fenômenos; emancipação simbolicamente representada pela morte do profano no quarto das reflexões e seu renascimento iniciático na Loja.
       A beleza dos ornamentos e símbolos do Templo é poderosa e impactante, cada Templo tem suas particularidades e identidade únicas, mas alguns objetos e emblemas são universais, como os altares, as jóias fixas e móveis, os candelabros, as colunas, o mar de bronze, o livro da lei, entre outros.  Na história da maçonaria, aprendemos que Lojas já foram realizadas a céu aberto, em sótãos secretos, escondidos detrás de espaços concedidos pelos nazistas às missas cristãs em campos de concentração. Nesses lugares, obviamente não havia a possibilidade da reprodução ou aproximação visual e física do Templo de Salomão, mas nos corações, mentes e almas de seus membros com certeza se construía um Templo majestoso e sagrado, consagrado à Glória do Grande Arquiteto do
Universo e se efetivava uma verdadeira Loja, forte e unida.
       Em opontodentrodocirculo,  há  a  referência  à  chamada  Técnica  Expositiva  de  ensino,  que corresponde  à  aplicação  do  Método  Dedutivo  lógico,  verbalizado  ou  com  uso  de audiovisuais, e a proposta de  um exercício de   sete  frases  relacionadas ao  tema Templo e Loja:
       O Templo é um caderno, a Loja um lápis.
       No Templo estamos parados, na Loja em movimento.
       Do Templo falamos, da Loja ouvimos.
       O Templo é pequeno, a Loja é grande.
       O Templo tem um nível, a Loja um prumo.
       O Templo tem forma limitada, a Loja ilimitada.
       O Templo protegemos, a Loja nos protege.
       O escritor do texto questiona o que  pensamos a respeito dessa leitura e como reagiríamos a seguinte  frase: “O Templo é profano e a Loja sagrada”. Também convida a reflexão  outra frase do mesmo texto: “Combatemos  os Vícios  nos Templos  e  aprendemos  a Virtude  nas Lojas”. Realmente a distinção entre Templo e Loja é clara, mas a relação de entrelaçamento entre os dois também é forte verdadeira  e mesmo com uma sensação de certa superioridade em  importância ao que a Loja significa, o Templo é seu caminho e sua morada, seu esteio sagrado e por  isso poderoso, magistral e edificante. Somos alma e estamos corpóreos e por semelhança somos a Loja e estamos no Templo.
       Concluo, como um  simples aprendiz em  seus primeiros passos, que ambos  são  sagrados e que  a diferença  é que um  é perene,  como os próprios Sol  e Terra,  a outra  é  eterna,  como Deus e suas chispas divinas, não morre nem se degrada no  tempo espaço. Templo é corpo vivo, Loja é Verbo divino. 
                        Or.·. de Porto Alegre, 14 de Setembro de 2016  da   E.·. V.·.
                                                     Luís Fernando
                                                        Apr.·. M.·.

Bibliografia:
Manual de Instruções Maçônicas de Aprendiz. Edgar Menna Barreto.
opontodentrodocirculo.wordpress.com



terça-feira, 4 de outubro de 2016

POMPA E CIRCUNSTÂNCIA


Mês de equinócio é mês de sessões de Grande Loja (ou Grande Oriente). Em Portugal, no Brasil ou, genericamente em qualquer parte do mundo onde esteja implantada a Maçonaria, sessão de Grande Loja ou Grande Oriente é, normalmente, sinónimo de pompa e circunstância. 

Desde que a Maçonaria especulativa surgiu, muito rapidamente a Primeira Grande Loja passou a ter como dirigente máximo um elemento da nobreza. Ora, como sabemos, nobreza britânica e pompa e circunstância são termos inseparáveis... 

Não há mal nenhum na pompa e circunstância - desde que cada maçom tenha sempre presente que o que verdadeiraente importa não tem nada a ver com isso.

Maçonaria pode ter brilho, pode ter dourados, pode ter aventais ricamente bordados, colares vistosos e toda a série de penduricalhos que se quiser. Mas, em Maçonaria o que verdadeiramente importa é a construção que cada um faz de si e em si mesmo. Esse é que é o princípio e o fim.

A pompa, a circunstância, os penduricalhos, os profusos elogios, saudações e outras intervenções fazem parte, mas não são mais do que mundanidades, afinal concessões que nós, maçons, fazemos ao que de nós menos importa, à imperfeição que reside em nós. Se nós, maçons, não nos reconhecêssemos imperfeitos, não buscaríamos aperfeiçoarmo-nos... E é esse nosso lado imperfeito que atende a todas essas mundanidades. Mas o maçom deve ter sempre presente que essas mundanidades não são mais do que a ganga, a roupa, o cenário, que acompanha e simultaneamente cobre o que realmente interessa: o discreto mas incessante trabalho que cada um deve fazer em si para procurar sempre ser um pouco melhor, um pouco mais digno da centelha divina ínsita na Vida que o anima e que é verdadeiramente o essencial de si, o que permanecerá depois de tudo o resto se desintegrar.

Não há mal nenhum que o maçom aprecie a pompa e circunstância, ache bonitos os dourados e penduricalhos - desde que não se esqueça nunca de que tudo isso pouco significa em face do que verdadeiramente importa: o seu esforço constante e solitário no burilar de si próprio, na procura da libertação da Luz que busca e que afinal traz em si e só precisa descobri-la e desvelá-la. Só assim as mundanidades permanecem confinadas onde é saudável que permaneçam relegadas - e não se transformam em profanidades.

Pompa, circunstância, penduricalhos, títulos, honrarias não passam de, porventura necessárias, concessões que o maçom faz a si próprio, na parte de si que menos importa. Mas integram apenas o ponto de partida, nunca constarão do ansiado porto de chegada... À medida que se vai construindo, o maçom vai vendo diminuir o "valor" de tudo isso.

Porque o que todos os maçons sabem e não devem nunca esquecer é que há uma igualdade essencial entre todos eles, desde o Aprendiz de alvo avental, ao Companheiro, ao Mestre, ao Oficial de Loja, ao Venerável Mestre, ao Grande Oficial e ao Grão-Mestre: com mais ou menos atavios nos seus aventais, com mais ou menos brilhos, com mais ou menos louvores ou elogios, com mais ou menos "importância", todos não passam de Operários em Construção!

Rui Bandeira
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