O verdadeiro e mais
profundo sentido de Eros não é a satisfação individual do homem e da mulher,
nem tão pouco a procriação da prole. Eros tem um back-ground, um fundo ou substrato de natureza metafísica, cósmica,
universal, que não é conscientemente percebido pelos sexos. Por detrás da
conhecida profanidade da libido canta ignota sacralidade de Eros...
Esse substrato cósmico
de Eros é o anseio pelo retorno à fonte universal de todas as coisas individuais.
Os indivíduos orgânicos, resultantes da união dos sexos, representam um
processo centrífugo, dispersivo, rumo à periferia. Por que é que Eros tem o
poder de individualizar novas ondas de vida? Unicamente porque, no ato sexual,
retorna ao oceano imenso da vida cósmica experimentado, geralmente, na estranha
embriaguez do orgasmo voluptuoso.
A eterna Realidade não
tem sexo. O Absoluto é essencialmente assexual. O homem – isto é, o ser humano
como tal, o homo, o ânthropos, o Mensch; não o vir, o anér, o Mann – desconhece o sexo. A ramificação em dois sexos é o primeiro
passo para a individualização do homem universal.
Entretanto, o homem
assim individualizado em macho e fêmea conserva nas incônscias profundezas da
sua natureza humana as reminiscências do que foi na sua fase pré-sexual e o que
continua a ser, mesmo agora, na intima essência do seu ser humano. Essa
silenciosa nostalgia do seu estado puramente humano, pré-masculino e
pré-feminino, ecoa perenemente em cada uma das células do varão e da mulher. A
união sexual é uma tentativa de retorno dos dois ramos da árvore humana,
macho-fêmea, ao tronco único da natureza humana como tal; o vir e a fêmina anseiam pelo homo;
o anér e a gyné suspiram pelo anthropos;
o Mann e a Weib tentam reconstruir o Mensch.
A locução popular
"minha cara metade" oculta, por detrás da sua corriqueira banalidade,
uma verdade profunda: o sentimento obscuro do "incompleto" de cada
sexo e do "completo" daquilo que precedeu a bifurcação dos sexos. Certos
ascetas entendem que o retorno ao estado de "completo" se encontre na
abstenção sexual, uma vez que o uso do sexo representa o estado de
"incompleto". Mas essa lógica consciente do asceta não coincide com a
lógica inconsciente da humanidade, que, em virtude uma lógica de razões ignoradas,
continua a usar o sexo como um fator de integração humana, ainda que esse mesmo
sexo pareça ter sido o resultado duma desintegração. A humanidade professa a
lógica obscura e inconsciente de que o sexo, embora pareça representar a
decadência ou deterioração de um primitivo estado de inteireza e integridade,
é, não obstante, o meio ou veículo para um estado de mais completa inteireza do
que o da integridade inicial, pré-sexual.
Se as palavras
"integralista" e "totalitário" não tivessem, nos últimos
decênios, adquirido determinado sentido de cor política, usá-las-íamos neste
contexto para significar a eterna tendência de todo o ser, e do homem em
particular, para vir a ser explicita e totalmente o que já é implícita e
parcialmente. O homem quer ser atualmente o que já é potencialmente. E este
processo milenar de auto-realização (self-realization,
Selbstverwirklichung) vai através de Eros. O Eros da mitologia é uma
divindade criadora, não no sentido primário de procriar novos indivíduos, mas
no sentido profundo de criar, através de muitas individualizações parciais, o
homem universal, total. Eros é, de fato, o Amor que cria o homo, o Anthropos, o Mensch, na sua completa, última e absoluta
inteireza e perfeição.
Só assim se explica a
elementar veemência com que os sexos se atraem um ao outro, sem que eles mesmos
conheçam nitidamente a verdadeira razão dessa potência abismal; no zênite da
intensidade sexual descemos dois atores praticamente ao nadir da inconsciência,
deixando de ser atores do drama para se tornarem sofredores, ou vítimas
passivas de uma potência cósmica que os empolga com irresistível veemência.
"Paixão" (passio) é
passiva, algo que se padece, algo de que se é objeto sofredor, e não sujeito
ator.
Em última análise, Eros
é o brado cósmico pela plenitude.
É sumamente notável que
os grandes místicos e gênios espirituais da humanidade se sirvam de uma
linguagem visceralmente sexual ou erótica quando se referem ao retorno do homem
à suprema Realidade, Deus. Os profetas de Israel representam as relações entre
Javé e o povo eleito sob a forma de matrimônio, razão porque a idolatria é
constantemente comparada ao adultério. Jesus Cristo descreve o consórcio do
divino Lógos com a natureza humana
como uma festa nupcial. Paulo de Tarso traça o genial paralelo entre Cristo e a
igreja sob a base das relações entre homem e mulher.
Verdade é que o homem
animal não compreende o sentido profundo de Eros, limitando-o à esfera da
libido, das satisfações meramente carnais. Na realidade, porém, o verdadeiro
casamento não se consuma na união física dos corpos, como acontece no
acasalamento dos brutos, mas na integração dos espíritos, ou seja, na fusão
metafísico-mística do verdadeiro Eu humano com outro Eu. "O que Deus uniu
não o desuna o homem" – esta frase mística de Jesus tem um sentido
profundo, uma vez que só a união dos espíritos é que é uma união real e, por
isto, indissolúvel.
Os verdadeiros
"casados" encontram sua "casa".
Eros integra os
espíritos, reunificando em um só tronco os dois galhos diversificados pelos
sexos. O veemente brado pela unidade cósmica – é este o mistério último que
vibra por detrás da atração dos sexos. Eros a serviço do Cosmos.
É atestado de
incompreensão fazer consistir o fim principal do matrimônio na procriação de
novos indivíduos humanos, como certos autores e sociedades eclesiásticas
proclamam em nossos dias. Quando Deus resolveu criar Eva foi com o propósito
explicito, como diz o gênesis, de dar ao homem uma "auxiliar semelhante a
ele"; só mais tarde aparece, qual corolário, a função de Eva como mãe.
As palavras "uma
auxiliar semelhante a ele" revelam o dedo do gigante, mostram a presença
do gênio na redação do texto sacro. A mulher é, antes de tudo, uma
"auxiliar", colocada no mesmo plano com o homem, não acima dele, como
rainha, nem abaixo dele, como escrava, ideia essa também simbolizada na frase
de que Eva foi tirada do lado de Adão (A conhecida expressão "costela de
Adão" é simples errata do tradutor ignorante. O texto original não diz
"costela", mas "lado"), quer dizer que ela se acha no mesmo
nível da humanidade com ele – mas nem por isto é "igual ao homem", e,
sim, "semelhante a ele". A identidade da natureza vem expressa pela
palavra "auxiliar", e a diversidade do sexo pelo termo
"semelhante". Unidade sem diversidade seria monotonia, estagnação,
inércia, morte. Diversidade sem unidade seria caos, desintegração, desordem.
Mas, unidade na diversidade, ou diversidade na unidade é harmonia, e, sendo o
ser humano "imagem e semelhança de Deus", não pode deixar de ser personificação
da harmonia. Homem e mulher são idênticos pela unidade da natureza, e não
idênticos pela diversidade dos sexos. Idênticos no plano da humanidade como homo e homo, são Adão e Eva
dissemelhantes como sexos, como vir e
fêmina, a fim de se poderem completar no plano duma humanidade superior,
apenas vislumbrada pela humanidade do presente século.
Tese, antítese e
síntese...
No princípio, temos a
tese, isto é, o estado neutro, não diferenciado, pré-sexual, a humanidade
amorfa, incolor, embrionária.
Depois vem a antítese
dos sexos, a bifurcação Adão-Eva, a polaridade nitidamente diferenciada entre
macho e fêmea, externamente diferentes, internamente idênticos.
Por fim, aparecerá a
síntese dos sexos processada pelo Eros superior, a re-união dos dois polos
adversos numa só natureza humana, incomparavelmente superior e mais gloriosa
que a da tese primitiva.
Os que condenam
incondicionalmente o Eros não lhe compreendem a função metafísica. Devido aos
inegáveis abusos que o homem animal tem cometido e comete sem cessar nesse
plano, rejeitam esses doutrinadores ascéticos o próprio substrato eterno dos
sexos.
Compreende-se assim por
que o Cristo não era inimigo de Eros. Se o fora, não teria sido o maior gênio
cósmico da humanidade. A sublimação de Eros pela compreensão da sua verdadeira
função, no drama multimilenar da humanidade em marcha – é esta a tarefa
gloriosa dos verdadeiros luminares do Cristianismo e guias espirituais do
gênero humano.
(Huberto
Rohden – Livro: Profanos e Iniciados)
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