terça-feira, 15 de janeiro de 2013

MULHERES


REENCARNAÇÕES - poema de Jenny Londoño
Venho desde ontem, do passado obscuro,
com as mãos atadas pelo tempo,
com a boca selada desde épocas remotas.
Venho carregada de dores antigas
recolhidas por séculos,
arrastando correntes longas e indestrutíveis.
Venho do fundo do poço do esquecimento,
com o silêncio às costas,
com o medo ancestral que tem corroído a minha alma
desde o princípio dos tempos.
Venho de ser escrava por milénios.
Submetida ao desejo do meu raptor na Pérsia,
escravizada na Grécia pelo poder romano,
convertida em vestal nas terras do Egipto,
oferecida aos deuses em ritos milenares,
vendida no deserto
ou avaliada como uma mercadoria.
Venho de ser apedrejada por adúltera
nas ruas de Jerusalém,
por uma turba de hipócritas,
pecadores de todas as espécies
que clamavam aos céus o meu castigo.
Fui mutilada em muitos povos
para privar o meu corpo de prazeres
e convertida em animal de carga,
trabalhadora e parideira da espécie.
Violaram-me sem limites
em todos os cantos do planeta,
sem que conte a minha idade madura ou tenra
ou importe a minha cor ou estatura.
Tive que servir ontem aos senhores,
submeter-me aos seus desejos,
entregar-me, doar-me, destruir-me
esquecer-me de ser uma entre milhares.
Fui barregã de um senhor de Castela,
esposa de um marquês
e concubina de um comerciante grego,
prostituta em Bombaim e nas Filipinas
e sempre foi igual o meu tratamento.
De uns e de outros, sempre escrava,
de uns e de outros, dependente.
Menor de idade em todos os assuntos.
Invisível na história mais longínqua,
esquecida na história mais recente.
Eu não tive a luz do alfabeto
durante muitos séculos.
Adubei com as minhas lágrimas a terra
que devia cultivar desde a infância.
Percorri o mundo em milhares de vidas
que me foram entregues uma a uma
e conheci todos os homens do planeta:
os grandes e pequenos, os bravos e cobardes,
os vis, os honestos, os bons, os terríveis.
Mas quase todos levam a marca dos tempos.
Uns manejam vidas como amos e senhores,
asfixiam, aprisionam, sugam e aniquilam;
outros manejam almas, negoceiam com ideias
assustam ou seduzem, manipulam e oprimem.
Uns contam as horas com o fio da fome
atravessado no meio da angústia.
Outros viajam nus pelo seu próprio deserto
e dormem com a morte metade do dia.
Conheço-os a todos.
Estive perto de uns e de outros,
servindo cada dia, recolhendo migalhas,
baixando a cabeça a cada passo, cumprindo o meu carma.
Percorri todos os caminhos.
Arranhei paredes e ensaiei silêncios,
tratando de cumprir as ordens 
de ser como eles querem,
mas não o consegui.
Jamais se permitiu que eu escolhesse
o rumo da minha vida
e caminhei sempre numa alternativa:
ser santa ou prostituta.
Conheci o ódio dos inquisidores,
que em nome da “santa madre Igreja”
condenaram o meu corpo ao seu serviço
ou às infames chamas da fogueira.
Chamaram-me de múltiplas maneiras:
bruxa, louca, adivinha, pervertida, 
aliada de Satanás,
escrava da carne, 
sedutora, ninfomaníaca,
culpada de todos os males da terra.
Mas continuei vivendo,
arando, colhendo, costurando,
construindo, cozinhando, tecendo, 
curando, protegendo, parindo, 
criando, amamentando, cuidando
e, sobretudo, amando.
Povoei a terra de senhores e de escravos,
de ricos e mendigos, de génios e de idiotas,
mas todos tiveram o calor do meu ventre,
o meu sangue e o seu alimento
e levaram com eles um pouco da minha vida.
Consegui sobreviver à conquista 
brutal e desapiedada de Castela 
nas terras da América,
mas perdi os meus deuses e a minha terra
e o meu ventre pariu gente mestiça
depois do castelhano me tomar à força.
E neste continente manchado 
prossegui a minha existência,
carregada de dores quotidianas.
Negra e escrava no meio da fazenda 
vi-me obrigada a receber o amo
quantas vezes ele quisesse,
sem poder expressar nenhuma queixa.
Depois fui costureira,
camponesa, servente, lavradora,
mãe de muitos filhos miseráveis,
vendedora ambulante, curandeira,
cuidadora de meninos ou anciãos,
artesã de mãos prodigiosas, 
tecelã, bordadeira, operária, 
professora, secretária, enfermeira.
Sempre servindo todos,
convertida em abelha ou sementeira,
cumprindo as tarefas mais ingratas,
moldada como um cântaro por mãos alheias.
E um dia doí-me das minhas angústias,
um dia cansei-me das minhas azáfamas,
abandonei o deserto e o oceano,
desci da montanha,
atravessei as selvas e as fronteiras
e converti a minha voz doce e tranquila
em sopro de vento
em grito universal e enlouquecido.
E convoquei a viúva, a casada,
a mulher do povo, a solteira,
a mãe angustiada,
a feia, a recém-parida,
a violada, a triste, a calada,
a formosa, a pobre, a aflita,
a ignorante, a fiel, a enganada,
a prostituída.
Vieram milhares de mulheres juntas 
escutar a minhas arengas.
Falou-se de dores milenares,
de longos grilhões 
que os séculos nos fizeram carregar às costas.
E formámos com todas as nossas queixas
um caudaloso rio que começou a percorrer o universo,
afogando a injustiça e o esquecimento.
O mundo ficou paralisado
‘Os homens sem mulheres não caminham!’
Pararam as máquinas, os tornos,
os grandes edifícios e as fábricas,
ministérios e hotéis, oficinas e escritórios,
hospitais e lojas, lares e cozinhas.
As mulheres – por fim, descobrimo-lo
‘Somos tão poderosas como eles
e somos muitas mais sobre a terra!
Mais que o silêncio, mais que o sofrimento!
Mais que a infâmia e mais que a miséria!’
Que este cântico ressoe
nas longínquas terras da Indochina,
nas areias cálidas de África,
no Alasca ou na América Latina.
Que o homem e a mulher se apropriem
da noite e do dia,
que se juntem os sonhos e os gozos
e se aniquile o tempo da fome e da seca.
Que se quebrem os dogmas e o amor brote novo.
Homem e mulher, lançando a semente,
mulher e homem de mãos dadas,
dois seres únicos, diferentes, mas iguais.


Tradução do Espanhol: Maria E. Catela

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