sexta-feira, 25 de maio de 2018

PRECE E MEDITAÇÃO



PRECE E MEDITAÇÃO 2 
Swami Satprakashananda


A prece é evidentemente uma relação verbal com Deus. Oramos a Deus e Ele responderá a nossa prece se a mesma for profunda e sincera. Podemos rezar a Deus por qualquer coisa que quisermos. As pessoas mundanas oram a Deus por objetivos mundanos, como: poder, posição, beleza, juventude, longevidade, posses, para se livrar de calamidades, enfim, por inúmeros interesses seculares. Se as preces forem sinceras, então elas serão atendidas. No entanto, as pessoas que tem inclinação espiritual rezam a Deus por valores espirituais.

Uma pessoa não pode ser mentalmente espiritual enquanto não se conscientizar da futilidade dos desejos mundanos. A pessoa que segue o caminho da virtude fica desiludida de todas as dualidades. Ela entende então que ter prosperidade e posses de bens não irá resolver os seus problemas existenciais. A vida consiste num drama de nascimento, crescimento, decadência e morte. A pessoa está inevitavelmente sujeita à experiência dual de sofrimento e prazer, de amor e ódio, de esperança e medo, de sucesso e fracasso. A experiência dual não é gratificante, mesmo que se viva numa sociedade civilizada ou numa comunidade bárbara, mesmo que se viva num palácio real ou numa cabana. Qualquer experiência obtida nesta vida sempre será dual. A vida neste mundo consiste em constante mudança.
Apesar de todas as invenções tecnológicas, apesar das variadas descobertas científicas, apesar de todas as estratégias políticas, apesar de todos dispositivos utilitários, a experiência básica do homem, a base comum da humanidade não muda. Então, no que consiste a base comum da humanidade? Consiste no drama de nascimento, crescimento, decadência e morte. Esse drama de sorrisos e lágrimas, esperança e medo, subir e cair nunca irá mudar. Todas as mudanças encontram-se na superfície. Assim, nós é que teremos de mudar se quisermos resolver efetivamente o nosso problema existencial. Frequentemente mais problemas são criados do que solucionados quando se criam coisas para promover o prazer e conforto. Os problemas continuam porque vivemos num mundo de dualidades, de pares de opostos.
Quando uma pessoa fica desiludida com as dualidades da vida, ela busca ir além de toda relatividade; procura alcançar aquela Realidade que é absoluta. Só Deus é bom no sentido absoluto. Não existe o bem no sentido relativo. Só Ele é o Supremo Bem. Só quando uma pessoa estiver convencida disso, é que sua mente se voltará na direção de Deus. Somente, então, é que se tornará um verdadeiro aspirante espiritual - um buscador de Deus.
Quando a pessoa compreende essa verdade e reconhece a limitação de todos os valores seculares, desenvolve a percepção de que o único e supremo propósito da vida é realizar Deus, é ver Deus. Então é que a pessoa busca a Deus como um ideal, como uma meta. Então ela não ora a Deus por interesses seculares; ora a Deus por valores espirituais. Compreende que são somente os tesouros espirituais que não são destruídos, que não enferrujam e que nenhum ladrão pode roubar.
A pessoa então não ora mais por interesses seculares. Se por acaso ora a Deus por interesses seculares é por causa do seu desenvolvimento espiritual. Por exemplo, ela pode orar a Deus por boa saúde e por uma posição segura e por benefício espiritual. Ela entende que orar a Deus por valores seculares, tais como: poder, riqueza, beleza, posição e outras coisas semelhantes, é como colher bijuterias após ter descoberto uma mina de diamantes. É como aplacar a sede bebendo água de poço, após conhecer uma fonte perene de ambrósia. Quem senão uma criança irá ao imperador dos imperadores em busca de brinquedos e bonecas.
É para ser entendido que esta vida sempre continuará a ser o drama de sorrisos e lágrimas, de esperanças e medos, de êxitos e fracassos, onde quer que a pessoa possa estar. Assim foi no passado, assim é no presente, e assim na direção de todos os pontos cardinais. Você não pode sair desse labirinto. Aqueles que reconhecem a limitação da experiência dual, as limitações do mundo relativo, buscam a Deus como um ideal, como uma meta. Sem o reto entendimento isso não é possível.
Os videntes védicos reconheceram a importância do reto entendimento. No Svetasvatara Upanishad encontramos as seguintes preces:
"Possa Ele, o Senhor do Universo, o grande Vidente que é a origem dos deuses e o seu sustentador, que trouxe à existência a Alma Cósmica no início da criação, possa Ele conceder-nos reto entendimento". (III:4)
"Possa aquele Ser radiante de luz, que embora Uno e não diversificado, pelos Seus múltiplos poderes, e sem nenhum motivo próprio, dá origem às diversidades e no final (do ciclo) reabsorve em Si mesmo o universo. Possa Ele dotar-nos de reto entendimento". (IV:I)
O reto entendimento é muito mais valioso do que todas as nossas riquezas externas. Você não pode utilizar os seus recursos externos ou internos para o seu próprio beneficio a não ser que tenha o reto entendimento, a não ser que tenha sabedoria. Os sábios vedânticos entenderam que, mais do que qualquer outra coisa, o homem precisa é de reto entendimento. Sem o reto entendimento não será capaz de utilizar a sua riqueza corretamente. Não será capaz de conviver adequadamente com seus amigos; não será capaz de utilizar apropriadamente a sua posição; não será capaz de usar corretamente de seus pertences; poderá até usá-los erradamente para o seu próprio mal. Sem o reto entendimento não será capaz até mesmo de usar corretamente a sua inteligência e habilidades estéticas.
Assim, a primeira coisa que necessitamos é o verdadeiro entendimento, a verdadeira sabedoria. Então, qualquer coisa que nos seja disponibilizada podemos usar para o nosso próprio benefício. Caso contrário, a aquisição de poder e posição não irá nos ajudar. Desta forma, poderá haver muitas e diferentes formas de preces que uma pessoa poderá adotar por falta de verdadeiro entendimento. 

(Extraído do Livro “Meditation: Its Process, Practice, And Culmination” de Swami Satprakashananda)
PAZ INTERIOR - Swami Satprakashananda

quarta-feira, 9 de maio de 2018

O DRAMA DE EROS


O verdadeiro e mais profundo sentido de Eros não é a satisfação individual do homem e da mulher, nem tão pouco a procriação da prole. Eros tem um back-ground, um fundo ou substrato de natureza metafísica, cósmica, universal, que não é conscientemente percebido pelos sexos. Por detrás da conhecida profanidade da libido canta ignota sacralidade de Eros...
Esse substrato cósmico de Eros é o anseio pelo retorno à fonte universal de todas as coisas individuais. Os indivíduos orgânicos, resultantes da união dos sexos, representam um processo centrífugo, dispersivo, rumo à periferia. Por que é que Eros tem o poder de individualizar novas ondas de vida? Unicamente porque, no ato sexual, retorna ao oceano imenso da vida cósmica experimentado, geralmente, na estranha embriaguez do orgasmo voluptuoso.
A eterna Realidade não tem sexo. O Absoluto é essencialmente assexual. O homem – isto é, o ser humano como tal, o homo, o ânthropos, o Mensch; não o vir, o anér, o Mann – desconhece o sexo. A ramificação em dois sexos é o primeiro passo para a individualização do homem universal.
Entretanto, o homem assim individualizado em macho e fêmea conserva nas incônscias profundezas da sua natureza humana as reminiscências do que foi na sua fase pré-sexual e o que continua a ser, mesmo agora, na intima essência do seu ser humano. Essa silenciosa nostalgia do seu estado puramente humano, pré-masculino e pré-feminino, ecoa perenemente em cada uma das células do varão e da mulher. A união sexual é uma tentativa de retorno dos dois ramos da árvore humana, macho-fêmea, ao tronco único da natureza humana como tal; o vir e a fêmina anseiam pelo homo; o anér e a gyné suspiram pelo anthropos; o Mann e a Weib tentam reconstruir o Mensch.
A locução popular "minha cara metade" oculta, por detrás da sua corriqueira banalidade, uma verdade profunda: o sentimento obscuro do "incompleto" de cada sexo e do "completo" daquilo que precedeu a bifurcação dos sexos. Certos ascetas entendem que o retorno ao estado de "completo" se encontre na abstenção sexual, uma vez que o uso do sexo representa o estado de "incompleto". Mas essa lógica consciente do asceta não coincide com a lógica inconsciente da humanidade, que, em virtude uma lógica de razões ignoradas, continua a usar o sexo como um fator de integração humana, ainda que esse mesmo sexo pareça ter sido o resultado duma desintegração. A humanidade professa a lógica obscura e inconsciente de que o sexo, embora pareça representar a decadência ou deterioração de um primitivo estado de inteireza e integridade, é, não obstante, o meio ou veículo para um estado de mais completa inteireza do que o da integridade inicial, pré-sexual.
Se as palavras "integralista" e "totalitário" não tivessem, nos últimos decênios, adquirido determinado sentido de cor política, usá-las-íamos neste contexto para significar a eterna tendência de todo o ser, e do homem em particular, para vir a ser explicita e totalmente o que já é implícita e parcialmente. O homem quer ser atualmente o que já é potencialmente. E este processo milenar de auto-realização (self-realization, Selbstverwirklichung) vai através de Eros. O Eros da mitologia é uma divindade criadora, não no sentido primário de procriar novos indivíduos, mas no sentido profundo de criar, através de muitas individualizações parciais, o homem universal, total. Eros é, de fato, o Amor que cria o homo, o Anthropos, o Mensch, na sua completa, última e absoluta inteireza e perfeição.
Só assim se explica a elementar veemência com que os sexos se atraem um ao outro, sem que eles mesmos conheçam nitidamente a verdadeira razão dessa potência abismal; no zênite da intensidade sexual descemos dois atores praticamente ao nadir da inconsciência, deixando de ser atores do drama para se tornarem sofredores, ou vítimas passivas de uma potência cósmica que os empolga com irresistível veemência. "Paixão" (passio) é passiva, algo que se padece, algo de que se é objeto sofredor, e não sujeito ator.
Em última análise, Eros é o brado cósmico pela plenitude.
É sumamente notável que os grandes místicos e gênios espirituais da humanidade se sirvam de uma linguagem visceralmente sexual ou erótica quando se referem ao retorno do homem à suprema Realidade, Deus. Os profetas de Israel representam as relações entre Javé e o povo eleito sob a forma de matrimônio, razão porque a idolatria é constantemente comparada ao adultério. Jesus Cristo descreve o consórcio do divino Lógos com a natureza humana como uma festa nupcial. Paulo de Tarso traça o genial paralelo entre Cristo e a igreja sob a base das relações entre homem e mulher.
Verdade é que o homem animal não compreende o sentido profundo de Eros, limitando-o à esfera da libido, das satisfações meramente carnais. Na realidade, porém, o verdadeiro casamento não se consuma na união física dos corpos, como acontece no acasalamento dos brutos, mas na integração dos espíritos, ou seja, na fusão metafísico-mística do verdadeiro Eu humano com outro Eu. "O que Deus uniu não o desuna o homem" – esta frase mística de Jesus tem um sentido profundo, uma vez que só a união dos espíritos é que é uma união real e, por isto, indissolúvel.
Os verdadeiros "casados" encontram sua "casa".
Eros integra os espíritos, reunificando em um só tronco os dois galhos diversificados pelos sexos. O veemente brado pela unidade cósmica – é este o mistério último que vibra por detrás da atração dos sexos. Eros a serviço do Cosmos.
É atestado de incompreensão fazer consistir o fim principal do matrimônio na procriação de novos indivíduos humanos, como certos autores e sociedades eclesiásticas proclamam em nossos dias. Quando Deus resolveu criar Eva foi com o propósito explicito, como diz o gênesis, de dar ao homem uma "auxiliar semelhante a ele"; só mais tarde aparece, qual corolário, a função de Eva como mãe.
As palavras "uma auxiliar semelhante a ele" revelam o dedo do gigante, mostram a presença do gênio na redação do texto sacro. A mulher é, antes de tudo, uma "auxiliar", colocada no mesmo plano com o homem, não acima dele, como rainha, nem abaixo dele, como escrava, ideia essa também simbolizada na frase de que Eva foi tirada do lado de Adão (A conhecida expressão "costela de Adão" é simples errata do tradutor ignorante. O texto original não diz "costela", mas "lado"), quer dizer que ela se acha no mesmo nível da humanidade com ele – mas nem por isto é "igual ao homem", e, sim, "semelhante a ele". A identidade da natureza vem expressa pela palavra "auxiliar", e a diversidade do sexo pelo termo "semelhante". Unidade sem diversidade seria monotonia, estagnação, inércia, morte. Diversidade sem unidade seria caos, desintegração, desordem. Mas, unidade na diversidade, ou diversidade na unidade é harmonia, e, sendo o ser humano "imagem e semelhança de Deus", não pode deixar de ser personificação da harmonia. Homem e mulher são idênticos pela unidade da natureza, e não idênticos pela diversidade dos sexos. Idênticos no plano da humanidade como homo e homo, são Adão e Eva dissemelhantes como sexos, como vir e fêmina, a fim de se poderem completar no plano duma humanidade superior, apenas vislumbrada pela humanidade do presente século.
Tese, antítese e síntese...
No princípio, temos a tese, isto é, o estado neutro, não diferenciado, pré-sexual, a humanidade amorfa, incolor, embrionária.
Depois vem a antítese dos sexos, a bifurcação Adão-Eva, a polaridade nitidamente diferenciada entre macho e fêmea, externamente diferentes, internamente idênticos.
Por fim, aparecerá a síntese dos sexos processada pelo Eros superior, a re-união dos dois polos adversos numa só natureza humana, incomparavelmente superior e mais gloriosa que a da tese primitiva.
Os que condenam incondicionalmente o Eros não lhe compreendem a função metafísica. Devido aos inegáveis abusos que o homem animal tem cometido e comete sem cessar nesse plano, rejeitam esses doutrinadores ascéticos o próprio substrato eterno dos sexos.
Compreende-se assim por que o Cristo não era inimigo de Eros. Se o fora, não teria sido o maior gênio cósmico da humanidade. A sublimação de Eros pela compreensão da sua verdadeira função, no drama multimilenar da humanidade em marcha – é esta a tarefa gloriosa dos verdadeiros luminares do Cristianismo e guias espirituais do gênero humano.
(Huberto Rohden – Livro: Profanos e Iniciados)