sexta-feira, 22 de agosto de 2014

O VISITANTE, O VIAJANTE E O TURISTA


Este texto foi originalmente publicado no blogue A Partir Pedra em 22 de setembro de 2010

Três homens decidiram deslocar-se a uma grande cidade, uma daquelas cidades que todos desejamos conhecer, com história, dimensão, vida, monumentos, museus, teatros, cinemas, enfim, uma metrópole moderna. Todos eles dispunham de tempo e meios para por lá ficarem um mês e todos eles iam decididos a fazer a "viagem da sua vida" e a ficar a conhecer aquela cidade o mais profundamente possível. Esses três homens eram, como é natural, diferentes e cada um preparou e realizou a expedição à sua maneira.

O primeiro homem, chamemos-lhe Visitante, contratou através da sua agência de viagens os serviços do melhor operador turístico da cidade, que lhe preparou meticulosamente a estada. Chegado a essa cidade, o Visitante tinha preparado um completo programa de trinta dias de visitas guiadas a tudo o que a cidade de melhor tinha para oferecer aos seus visitantes. Foi uma visita inesquecível! O Visitante foi guiado pelos melhores museus da cidade, onde lhe foram mostradas as mais significativas obras de arte que aí havia e as mesmas foram explicadas, enquadradas histórica e artisticamente. Foi guiado nas visitas aos mais relevantes monumentos, sendo-lhe chamada a sua atenção para o seu significado histórico, os detalhes da sua construção, a sua utilização nos dias de hoje. O operador reservou-lhe bilhete para assistir ao melhor espetáculo da cidade, proporcionou-lhe um guia para o conduzir pelas mais esconsas vielas da Cidade Antiga, pelos mais pitorescos recantos, pelos mercados mais tradicionais, apresentando-o a interessantes pessoas que ali viviam ou trabalhavam. Também ao Visitante foram mostradas as mais deslumbrantes paisagens da cidade e proporcionados demorados e agradáveis passeios nos mais agradáveis parques e jardins ali existentes. Claro que foi conduzido também às melhores, mais concorridas, completas e diversificadas zonas comerciais da cidade, onde o Visitante pôde admirar a maior variedade de objetos e bens de consumo e adquirir o que lhe interessou adquirir. Visitou a Universidade e as Bibliotecas, guiado por um culto guia que o operador contratou para o efeito. Visitou o Parlamento e os mais emblemáticos edifícios onde funcionavam os representantes políticos da urbe e do país, ouvindo as explicações de um guia especializado, que o esclareceu sobre as circunstâncias e a prática política ali vigentes. Maravilhou-se com a grandiosidade dos edifícios religiosos, enquanto ouvia as informações e explicações proporcionadas pelo guia especialista em Arte Sacra que o operador turístico contratou para o efeito. Enfim, foram trinta dias de algum cansaço, muitas visitas, muitos conhecimentos novos para digerir, mas foi realmente uma viagem extraordinária! No regresso, o Visitante pensava na melhor forma de elucidar os seus conterrâneos sobre as maravilhas, as riquezas, as belezas, que existiam naquela deslumbrante metrópole.

O segundo homem, designemo-lhe por Viajante, preparou e realizou a sua viagem de forma muito diferente. Não contratou os serviços de qualquer operador turístico, dispensou excursões e visitas guiadas. Preparou a sua viagem lendo tudo o que conseguiu descobrir sobre a cidade, a sua história, os seus monumentos e locais de interesse, as suas gentes. E mal desembarcou na cidade e se instalou no hotel escolhido, lançou-se numa contínua exploração da cidade. Também visitou, mas por si só, museus. Não viu tudo. Não teve ninguém que lhe chamasse a atenção para as melhores obras. Mas viu o que antecipadamente lera que era importante ver, apreciou demoradamente aquilo de que gostou, passou mais brevemente pelo que achou menos significativo. Também visitou e fotografou os monumentos da cidade, descobrindo ângulos curiosos, vestígios do passado interessantes. Falou com os guardas dos monumentos e descobriu curiosas e picarescas histórias, do passado e do presente, por eles contadas. Perguntou aos habitantes locais que espetáculos interessantes havia e acabou por ir ver um par de espetáculos que não constavam dos circuitos turísticos, que o elucidaram sobre a genuinidade das gentes daquela terra. Vagabundeou pela Cidade Antiga e ali se perdeu horas esquecidas, recanto aqui, conversa acolá, absorvendo a atmosfera da cidade e da sua história e da sua vida. Provou o que se vendia nos mercados, comeu as comidas típicas da cidade, confraternizou à roda de uns copos com genuínos habitantes da cidade, apercebeu-se dos seus anseios e desilusões, das suas alegrias e tristezas, do seu labor e do seu ócio. Passeou por agradáveis jardins, observando as brincadeiras das crianças e nelas se intrometendo. Conheceu muita gente, conversou, ouviu histórias interessantes, soube onde adquirir as mais genuínas coisas da cidade ao melhor preço, visitou fábricas e locais de trabalho, escolas e locais de culto. Em descontraída manhã de domingo, ousou mesmo jogar com um grupo de jovens o desporto preferido na cidade e - claro! - perdeu... Falou com taxistas e polícias, vendedores e ardinas e artesãos e comerciantes, enfim embrenhou-se no coração da cidade, misturou-se com as suas gentes, viu e visitou a cidade e tudo o que de bom e bonito ela tinha pelos olhos dos seus habitantes. Quando findou o tempo que tinha reservado para aquela visita, o Viajante quase se sentia um novo habitante daquela urbe, dela partia com alguma pena. Na sua máquina fotográfica, tinha mais fotografias de pessoas do que de monumentos, mas cada imagem de cada pessoa recordava-lhe um momento único, uma história curiosa, um episódio pitoresco. Na viagem de regresso, pensava de si para si que ficara mesmo a conhecder a cidade e as suas gentes e que talvez fosse interessante elucidar os seus conterrãneos como se vivia naquela importante urbe.

O terceiro homem, refiramo-lo por Turista, antes de viajar, comprou um guia de viagem relativo à cidade, consultou-o e assinalou meia dúzia de monumentos a visitar, viu quais os restaurantes recomendados, anotou as mais agradáveis esplanadas. Escolheu cuidadosamente o hotel onde ficaria. Chegado à cidade, instalou-se no hotel e tratou de descobrir os serviços que proporcionava. Reservou um dia para utilizar o SPA, comprou umas horas de consumo de Internet, para que, diariamente, ou quase, reservasse um pedaço do dia a ler as notícias do seu país. Contratou, para determinado dia, uma visita guiada à cidade, daquelas de autocarro aberto com guia de microfone, que vai debitando informações sobre o que se vai vendo. Visitou descansamente a cidade. Viu os monumentos que selecionara, calma e descontraídamente. Comeu em todos os restaurantes que referenciara. Passou agradáveis fins de tarde em sossegadas esplanadas. Passeou quando lhe apeteceu, olhando para onde o seu olhar caía, falando com quem o acaso colocava perto de si, ouvindo os ruídos ou músicas que a sorte e o local proporcionavam, cheirando aqu o perfume de flores, ali o odor de comida. Enfim, descansadamente viu o que quis ver, visitou o que lhe agradou visitar. Descansou e andou, parou e avançou. Voltou aos locais que mais lhe agradaram. Nem sequer passou por onde não lhe interessava. No regresso, satisfeiro e repousado, começou a germinar na sua mente algo que decidiu partilhar com os seus conterrâneos.

Caro leitor, faça agora uma pausa, pense e decida de si para si: qual dos três agiu melhor? E qual o pior?

A minha opinião é que nenhum foi melhor ou pior do que os demais. Cada um viu a cidade da e pela forma que a ele mais lhe convinha. Todos tiraram proveito da estada. Certamente proveitos diferentes - mas isso não é melhor nem pior, apenas diferente!

O Visitante, de regresso a casa, escreveu um exaustivo guia de viagem sobre a cidade, pelo qual os seus conterrâneos quase podiam saber tudo o que havia a saber sobre ela, mesmo antes de lá chegarem. O Viajante escreveu um livro de viagem, que retratou, com grande fidelidade, como era, como vivia, o que sentia, a gente daquela cidade. As suas impressões, os seus relatos permitiram a quem leu esse livro saber como é realmente, por dentro, essa cidade e como são os seus habitantes, mesmo antes de lá irem. O Turista, esse, regressado da sua despreocupada, descansada e nada exaustiva viagem... escreveu um romance passado naquela cidade. Quem o leu, admirou, além da qualidade da escrita e da trama da história, a forma como daquelas páginas se desprendia, leve mas sensivelmente, a atmosfera da cidade.

Que tem isto que ver com Maçonaria? Releia, caro leitor, o meu último texto sobre os Altos Graus. O Visitante simboliza o maçom que decide percorrer os Altos Graus, fazer a sua viagem apoiado no guia. Tudo aprende, certinho, direitinho. Compensa a falta de espontaneidade com a qualidade e quantidade do saber que recolhe. O Viajante simboliza o maçom que opta por seguir o seu caminho por si, fazendo a sua busca desenvolvendo ele as noções que aprendeu no seu percurso até à sua Exaltação como Mestre Maçom. Não tem a sua viagem tão organizada, tão completa, mas vive intensamente a sua busca. Não recolherá talvez a quantidade de ensinamentos passível de ser recolhida numa viagem organizada, mas recolheu o que lhe interessa e, no que lhe interessa, aprende a fundo. Vive a sua viagem e apreende a essência dela. E o Turista? Esse é o maçom que não se preocupa grandemente com tempos e saberes. Faz a sua viagem, segundo o seu tempo, o seu ritmo, os seus gostos. Não conhecerá tão profundamente como os outros, mas tudo vê, talvez mais de passagem, talvez mais intermitentemente, mas sempre de uma forma para si agradável. Só vai à Loja quando lhe apetece ir à Loja, uns anos exerce ofícios, noutros não está nisso interessado. Quando vai, quando está, participa e contribui. Mas nem sempre está disponível, necessita das suas pausas nas esplanadas. Faz a sua viagem como gosta, ao seu ritmo. Não aprende tanto como o Visitante, nem tão profundamente como o Viajante, mas o que aprende, aprende com gosto e por gosto e disso retira proveito. E partilha-o.

Todos fazem a sua viagem conforme preferem. Todos partilham o que aprendem com ela. Cada um à sua maneira. É útil partilhar a erudição. Mas também é útil partilhar a profundidade, a vivência, a genuinidade. E não menos útil partilhar a Beleza, a satisfação, que se tira da viagem, seja ela mais esforçada ou mais descansada. Nenhuma forma de viajar é melhor do que a outra. São, simplesmente, diferentes.

Afinal, o Visitante, que tudo aprendeu na sua primeira estada, quando voltar, já só voltará a lugares escolhidos, para relembrar a sua beleza e terá disponibilidade para sentir a vida do povo do lugar. E o Viajante, que conheceu ao início como vive a cidade, quando voltar certamente quererá saber mais sobre os seus monumentos e sua história, dará mais atenção à erudição, mas também apreciará fazê-lo mais descansadamente, com mais pausas, para melhor apreciar a atmosfera da cidade. E o Turista, esse, sempre visitando ao seu descansado ritmo, quando volta aprende mais um pouco e mais profundamente.

Não importa como se começa, como se prefere fazer a viagem. O que importa é fazê-la e ir aliando a Sabedoria (os conhecimentos privilegiados pelo Visitante), à Força (a profundidade, a vivência, a genuinidade, em primeiro lugar buscadas pelo Viajante) e à Beleza (descansadamente privilegiada pelo Turista).

Maçonaria é vida, faz parte da vida, é uma forma de aprender e apreciar e viver o mundo à nossa volta. De evoluir com a nossa vivência. E sobretudo de partilhar a nossa vivência, os nossos conhecimentos, a nossa evolução com os demais e beneficiar da partilha do que os demais nos proporcionam. Em suma, de cada um fazer a sua viagem, da forma que prefere e de que retira mais proveito e partilhar esse proveito com os demais, pela forma como melhor o conseguir fazer.

Rui Bandeira
        

Nenhum comentário: