terça-feira, 5 de novembro de 2013

A SERPENTE DO GÊNESE

Quando crianças recitam fábulas, não são mais ingênuas frente à linguagem que o fabulista emprestou aos animais; da ficção, elas não retêm como verdadeiro senão a moral que daí se destaca. Por que seríamos nós mais ingênuos que elas em presença do mito da queda de nossos primeiros pais? 
Essa narrativa é fundamental para a doutrina cristã, pois a catástrofe provocada pela serpente bíblica torna necessária a intervenção do Salvador. Não há nada aí senão que de muito verídico, para que se compreendam as alusões às quais se relacionam as imagens sagradas. 
Interpretemos primeiramente os símbolos, inspirando-nos naquilo que eles sugerem mais espontaneamente. Considerado desse ponto de vista, o casal adâmico personifica a humanidade primitiva, ainda animal, no sentido de que ignora o uso do fogo e não sonha nem com vestir-se nem com construir abrigos para si. Nossos primeiros pais nutriam-se de frutos que não se davam ao trabalho de cultivar e, ainda que não fossem macacos, viviam, ao menos, à maneira destes. Sua inteligência não estava ainda desenvolvida; eram impulsivos e obedeciam ao instinto que os guiava infalivelmente em tudo aquilo que tocasse à realização de suas funções fisiológicas. Sem noção do que lhes faltava, eles viviam satisfeitos com sua sorte, felizes e relativamente oniscientes, pois que um infalível instinto os tornava lúcidos quanto à satisfação de suas necessidades.
Tal é o estado paradisíaco que beneficia a animalidade dócil conforme à lei de sua espécie. Uma providência a protege, mas interdita-lhe aspirar o discernimento, porque o discernir é praticar ato de autodomínio intelectual, é querer fiar-se de outra luz que não a do instinto. Renunciar a deixar-se guiar passivamente por este último equivale a uma insubordinação culpável aos olhos do gênio protetor da espécie animal, logo, a um pecado contra as divindades agrestes, tais como o Pan helênico o Enkitou babilônico. 
É importante insistir sobre esse ponto, porque, se a Bíblia monoteísta está, às vezes, em contradição com ela mesma, é porque as tradições que ela recolheu remontam freqüentemente  a  muito  antigas  mitologias.  O deus antropológico do paraíso que deita vistas à brisa da noite é um antigo gênio tutelar confundido com o Ser Supremo. Não é senão a esse título primitivo que sua atitude se explica, porque um criador infinitamente sábio nos desconcertaria, se aquilo que se realizasse não estivesse dentro de seus planos. Como conceber que plantasse uma árvore fatídica e se desse ao trabalho de dotar a serpente de sua sutil sedução, sem contar com a queda? Apenas a mitologia comparada esclarece o significado de certos textos que emolduram mal a teologia judaica.
Que um deus pagão preposto ao governo da animalidade se ofenda com a emancipação humana, nada de mais escusável; mas respeitemos suficientemente a inteligência suprema, para não lhe atribuir sentimentos mesquinhos. Não é ela que forma os atores do drama da eterna evolução cujo espetáculo ela dirige? 
Entre esses atores figura a serpente que, longe de ser maldita por nossos longínquos ancestrais, aparece-lhes, ao contrário, como digna de veneração. Adornando as fontes que fazem jorrar a água vivificante do seio da terra divinizada, os lígures  estabeleceram uma analogia entre o riacho serpeante através da pradaria e a serpente deslizando entre as ervas, tanto que fizeram do réptil um animal sagrado diretamente relacionado com a vida. Partindo de uma concepção idêntica, os gregos atribuíram mais tarde à serpente um poder curativo.  Eles mantinham, nos templos de Esculápio, ofídios cujo contado deveria curar os doentes. O Ouroboros, — a imensa serpente que morde a própria cauda, — simbolizava, de outra parte, a vida geral, indestrutível, em seu eterno recomeço.
Mas a serpente bíblica faz alusão ainda a outro aspecto do símbolo. Se ela persuadiu Eva a provar do fruto proibido, é porque era da família da serpente python, inspiradora das pitonisas. Essas adivinhadoras liam naquilo que os ocultistas, a exemplo de Paracelso, chamavam de a luz astral. É permitido comparar  esse  agente  da  iluminação  imaginativa à obscura claridade que emana das estrelas, mas mais vale figurá-la como um brilho fosforescente envolvendo o globo terrestre. Essa atmosfera de difusa luminosidade influencia as imaginações receptivas que se comportam, em relação a ela, como um meio refringente condensador. Assim se explica a iluminação dos videntes que favorece a impressionabilidade  passiva  dos contemplativos abandonados ao sonho desperto.
É certo que, antes de pensar de uma maneira consciente, a humanidade longamente sonhou, a imaginação entrando em atividade antes da razão que não despertou senão tardiamente. Tal fato justifica a lenda, quando ela nos mostra a serpente se dirigindo  a Eva, personificando as faculdades imaginativas, de preferência a Adão, o futuro racional, nascido pesado de espírito e espontaneamente pouco compreensivo.
Eva adivinha, ela concebe femininamente aquilo que lhe sugere uma influência misteriosa, porque se desenvolve nela um dom de  vidência que se relaciona diretamente ao instinto. Deste último até a inteligência controlada, há uma etapa que consiste na adivinhação. Eva aí é elevada; depois faz subir Adão, porque a intelectualidade feminina não pode realizar um progresso sem que a mentalidade masculina disso se beneficie em contrapartida.  Eva não pode provar o fruto da árvore do discernimento sem partilhar com Adão o novo alimento que ela considera excelente.
Tomando ao pé da letra a narrativa Bíblia, a desobediência de nossos primeiros pais teria instantaneamente produzido seu efeito: de instintivos, eles ter-se-iam tornado inteligentes por milagre.  Dando-se conta de sua nudez, teriam inventado as vestes, sob a influência de um sentimento de pudor que lhes surgira subitamente. É crível que a evolução fosse lenta. Eva pôde escutar a serpente durante séculos antes de tocar o fruto proibido: os mitos se esquematizam com a supressão do tempo.
Na realidade o que corresponde no ser humano à inteligência feminina, logo, às faculdades sensitivas e divinatórias, desenvolveu-se anteriormente ao poder de raciocinar, concebendo  idéias  nítidas, susceptíveis de encadeamento lógico. A Eva simbólica foi, pois, a primeira a resgatar-se da animalidade pura e simples. Ela teve o pressentimento do amanhã intelectual humano e, inspirada pela serpente, concebeu a ambição de tornar-se semelhante aos deuses, conhecendo o bem e o mal.
Culpada de orgulho aos olhos do gênio tutelar da instintividade que pôde maldizer a serpente, ela não foi certamente culpada de um ponto de vista superior, porque a emancipação humana não poderia faltar em entrar no plano da Suprema Sabedoria.
Que enfoque reclama a teoria da queda? Se existiu aí degradação para a humanidade que se distancia do estado instintivo original, foi em relação à perda da felicidade inconsciente. Nós estimamos feliz a criança que brinca com inocência, preservada das preocupações da vida, mas lamentamos o inocente no qual a fase da infância se prolonga indevidamente, ou o velho tornado inconsciente pelo enfraquecimento de suas faculdades. Cada coisa tem seu tempo, tudo como cada estado comporta suas vantagens e seus inconvenientes. O macaco é mais ágil que o homem, sobre o qual suas quatro patas lhe conferem uma esmagadora superioridade, quando se pendura nas árvores, apoderando-se de seus frutos. O homem sentiu-se, primitivamente, inferior aos animais e teve por eles uma admiração que se traduziu em culto. Mas a espécie deserdada fisicamente desenvolve-se cerebralmente, na razão mesma da inferioridade de sua organização natural. Foi necessário passar por uma longa escola de privações e de sofrimentos, para adquirir artificialmente aquilo que uma sorte cruel parecia lhe recusar. O paraíso perdido corresponde a uma realidade, não menos que a condenação ao labor ingrato; mas é falso erigir em ideal humano a preguiça e a indolente inatividade.
Onde está nossa  nobreza? Nós que, orgulhosamente vestidos, não somos mais chamados a curvar a cabeça à maneira dos quadrúpedes? Criaturas cujo orgulho nada tem de ímpio, nós somos da raça dos Titãs, nascidos para conquistar o céu.  Mas, desejando o fim, é preciso que aceitemos os meios. O trabalho se impõe a nós: é inelutável, porque apenas ele conduz ao objetivo. 
Então, terminemos por compreender e mostremo-nos inteligentes até a penetração do sentido profundo da vida. Constataremos que viver e trabalhar são sinônimos. Os seres não existem senão em vista da tarefa que lhes incumbe. Emancipados da tutela indispensável da infância, não nos revoltemos contra a necessidade de ganhar penosamente nossa vida. Não será gemendo contra o pretenso pecado cometido aos olhos da providência animal, que nos mostraremos  homens, dignos filhos daquela Eva que teve o mérito de desejar a inteligência. Bendigamo-la, sem esquecer a serpente, besta feita maldita pela incompreensão.
Observemos. Antes de ser condenada a rastejar na lama, ela não teria sido um desses lagartos tidos por amigos do homem? Símbolo da luz astral, corresponde à divindade caldéia que se eleva até Samas, o deus solar, para chorar diante dele as infelicidades dos vivos, subtraídos à influência de Isthar depois que a deusa foi detida nos Infernos. Essa claridade difusa que ajuda a adivinhar instintivamente traz consigo o risco de errar facilmente, e está longe de oferecer as garantias da razão consciente; também Python sucumbiu traspassada por Apolo. A adivinhação incerta é suplantada por métodos de informação menos equívocos: um saber positivo substitui, pouco a pouco, as quimeras de uma visionariedade primitiva. 
Goethe rende-lhe homenagem no conto dito da Serpente Verde. Ele mostra a grande cobra  luminosa que se sacrifica para salvar o mundo, transformando-se em ponto de ligação entre as duas margens do rio da vida.
E a serpente de bronze não foi uma imagem antecipada do Salvador?
Oswald Wirth — Os Mistérios da Arte Real — Ritual do Adepto.

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