Foi Jung que nos chamou a atenção para esse aspecto particular da nossa psique, que é o compartilhamento coletivo e inconsciente de uma simbologia que habita na mente da humanidade desde os seus primórdios. Essa simbologia, que ele chamou de mundo dos arquétipos, é um arsenal de conceitos, intuições e experiências que as pessoas, ao longo do tempo vão acumulando em suas mentes inconscientes e transmitindo aos seus descendentes, na forma de costumes, tradições e outros comportamentos que se tornam cultura popular. Esses traços de cultura, muitas vezes, se convertem em crenças e valores que acabam conformando a vida das pessoas e suas sociedades, tanto para o bem como para o mal.
A religião é uma dessas experiências psíquicas cujas raízes estão plantadas no inconsciente coletivo da humanidade, mas seus ramos e frutos têm, ao longo do tempo e da história, conformado a vida de grande parte da humanidade. Todas as pessoas professam alguma forma de religião, já que, de um ponto de vista lógico, o próprio ateísmo seria uma religião, ou seja, a religião sem Deus, a crença do ateu.
Quem, em sã consciência, consegue formular de maneira lógica os fundamentos da sua religião sem apelar, no fim dos seus argumentos, para o velho recurso da fé? E não dizer que os fundamentos da fé não se discutem, mas aceita-se ou não, e pronto?
Assim é porque a religião é um fenômeno fundamentado em arquétipos hospedados no Inconsciente Coletivo da humanidade desde as suas primeiras experiências psíquicas. Fenômenos observados na natureza e não inteiramente compreendidos; intuições sobre fatos e acontecimentos que a mente não consegue explicar; sentimentos intraduzíveis na linguagem pobre e rude das primeiras civilizações são o fundamento de todas as religiões.
O que não se consegue exprimir em linguagem organizada, conceitual, lógica, a nossa mente transforma em símbolo, mito, diagrama, metáfora ou outra forma qualquer de mensagem. Pois toda informação que o nosso organismo recebe através dos seus cinco sentidos é armazenada em nossa mente. Se é processada pela mente consciente torna-se conhecimento, se não é processada dessa forma, torna-se intuições, pressentimentos, superstições.
Assim, é a fauna inconsciente, que muitas vezes, torna-se uma crença arraigada, e acaba dando nascimento ao fenômeno da religião. Esse fenômeno, que foi explorado por James Frazer (O Ramo de Ouro, 1890), nos leva a um tema particularmente relevante aos adeptos da Cabala e da Maçonaria, que são os chamados Antigos Mistérios.
Como sabemos, todos os povos antigos costumavam, de alguma forma, prestar homenagens à Terra-mãe, através de algum tipo de sacrifício ou representação folclórica, que tinha por objetivo obter as graças da divindade, para que ela os premiasse com fartas colheitas.
Fenômeno observado em seus efeitos, mas nunca compreendido em suas causas, as antigas civilizações intuíam nesse comportamento da natureza uma reciprocidade de ação que era benéfica quando elas lhe prestavam culto e maléfica quando esse culto não era prestado, ou, no seu entender, era mal feito ou recusado pela divindade que presidia essa propriedade da terra. Se perguntados por que realizavam tais cultos, eles não saberiam dar fundamentos lógicos para isso, mas sabiam que algum resultado disso adviria, e ninguém duvidava da importância desses cultos. Porque eles estavam entranhados no próprio espírito desses povos, e não realizá-los, na forma devida, traria algum tipo de malefício para o povo.
No Egito, com os Mistérios de Ísis, ou na Mesopotâmia com os ritos consagrados à deusa Ishtar, ou na Índia com os Mistérios de Indra, esses festivais, como eram chamados essas representações, tinham um caráter social e religioso que davam marca a um simbolismo arquetípico da maior importância para esses povos. Até na Grécia e entre os povos que se desenvolveram sob sua influência cultural, esse simbolismo assumiu um aspecto tão fundamental em suas culturas, que a partir de certo momento da sua história transformou-se em um instituto patrocinado pelo próprio Estado. É o caso da República de Atenas, por exemplo, que recepcionou, na legislação que Sólon lhes outorgou, os chamados Mistérios de Elêusis, como marca fundamental e obrigatória de sua cultura social, punindo inclusive com penas extremamente severas aqueles que violassem o caráter sacro dessas instituições. Mais tarde esse instituto foi recepcionado na legislação romana, por imposição do Imperador Adriano em 125 da era cristã[1].
Os Mistérios de Elêusis, como sabemos, eram originalmente um festival realizado na cidade santuário do mesmo nome, pequena aldeia próxima a Atenas. Fundamentado no mesmo espírito que hoje patrocina as festas populares dedicadas aos santos e santas padroeiras das nossas cidades, esses festivais tinham o objetivo de homenagear a deusa Deméter (Ceres, para os romanos) que, na mitologia grega, era a deusa que protegia a agricultura, personificada como a Terra-mãe. Porém, diferentemente dos nossos festivais religiosos modernos, o festival de Elêusis tinha marcas notadamente iniciáticas, pois contemplava uma parte não aberta à população, na qual somente pessoas escolhidas podiam participar. Esses eram os chamados “iniciados” nos Mistérios da deusa Deméter, a quem se acreditava eram conferidos importantes segredos iniciáticos, que iam desde conhecimentos científicos, políticos e sociológicos de alta relevância para a própria sociedade grega em geral, a segredos da religião grega, só acessíveis a alguns eleitos. A estes iniciados eram revelados, segundo Platão, os verdadeiros significados dos mitos e alegorias das lendas gregas, que constituíam o essencial das crenças que dominavam o espirito do povo helênico.
Deméter, a Terra-mãe, era vista pelos gregos como a mãe das almas, pois sua filha Perséfone (conhecida pelos romanos como Prosérpina), representava não só a semente que é plantada para dar renovos à vida, mas também o arquétipo da própria alma humana, ou seja, a Psique, que morre e revive no seio da terra. Assim, os Mistérios de Elêusis, como também os Mistérios de Ísis, no Egito, eram uma representação que tinha por objetivo homenagear os poderes da terra, capaz de gerar a vida a partir da morte. Dessa forma, se ela age assim com a produção da natureza, assim será também com a vida espiritual do homem, cuja continuidade depende do mesmo processo morte-vida, vida-morte, para que a espécie continue e evolua[2].
Com as variantes de estilo esses Mistérios eram praticados pela grande maioria dos povos antigos e sua fundamentação psíquica se apoiava no mito do sacrifício que se deve fazer à Mãe-terra para que ela outorgue, com benevolência, os seus frutos. Em muitos desses Mistérios, vidas de animais ou mesmo de pessoas eram sacrificadas à deusa. As lendas gregas estão cheias de histórias desses sacrifícios, onde, ás vezes, o sentimento humanístico do grego se revolta e levanta, no seio do povo, um herói para desafiar essas exigências, como nas lendas de Perseu, Teseu, Hércules e Prometeu. Nas civilizações da América pré-colombiana esses ritos eram praticados até a chegada dos colonizadores, com os vencedores sacrificando, no alto das suas pirâmides, milhares de prisioneiros, e deixando que seu sangue escorresse para as plantações, com o objetivo de fertilizá-las. Mais do que um ritual de crueldade, próprio de civilizações bárbaras e ignorantes, esse costume era uma variante dos cultos em homenagem à Mãe-Terra.
Isso mostra o poder dos arquétipos e o quanto eles conformam o comportamento das pessoas. Até na espiritualizada religião de Israel esse costume foi conservado, pois remanesceu na simbólica oferta do cordeiro pascal, como selo de Aliança entre o povo de Israel e seu deus. E o cristianismo, formado no simbolismo da religião judaica, espiritualizou esse arquétipo na mística oferta do sangue de Cristo, como o herói que se sacrifica pela salvação da humanidade. E a própria Bíblia, com os episódios do sacrifício de Abraão e Jefté, mostra que nos primórdios da sua civilização os israelenses também praticavam rituais de sacrifício humano.
Desta forma, a Árvore da Vida, biológica e espiritualmente, se renova e vai fornecendo, ad æternum, os seus frutos. Não é sem razão que Cícero, o grande orador romano dos tempos de César, ao comentar os Mistérios de Elêusis, nos quais era iniciado, disse:
“Muito do que é excelente e divino faz com que Atenas tenha produzido e acrescentado às nossas vidas, mas nada melhor do que aqueles Mistérios, pelos quais somos formados e moldados partindo de um estado de humanidade rude e selvagem. Nos Mistérios, nós percebemos os princípios reais da vida e aprendemos a viver de maneira feliz, mas principalmente a morrer com uma esperança mais justa.”[3]
Mas para que ela se renove e dê, perenemente, seus frutos, é preciso que o homem a cultive. Assim, a Árvore da Vida, que originalmente fora plantada por Deus para sustento da Criação, a partir do momento em que o homem tornou-se consciente e capaz de fazer suas próprias escolhas, passou a ser cultivada por ele e dele depende para a sua produção. Assim é que pode ser entendida a dicção da Bíblia quando diz que “ o homem se tornou um de nós; para conhecer o bem e o mal. Agora, talvez ele estenda sua mão e tome também da árvore da vida, coma e viva para sempre.”[4]
Metáfora mais eloquente do que essa para figurar os Mistérios que a própria natureza, ao engendrar e desenvolver um processo para a evolução da vida não podia ser melhor urdida pela mente do homem. Pois aqui, como bem assinala Teilhard de Chardin, está o reconhecimento de que na Criação de Deus, e mais especificamente, na humanidade, se desenvolve um plano de construção cósmica no qual o homem não é, como se já pensou, o centro nem a finalidade, mas sim, um eixo privilegiado de evolução. Quer dizer, o universo não existe para servir o homem, mas sim o homem para construí-lo e dar-lhe uma orientação. Não se trata de negar as teses antropocentristas e antropomorfistas que colocam o homem como “medida” de todas as coisas como ingenuamente pensavam os humanistas do passado, mas sim de reconhecer um novo humanismo, que sem destronar o homem da sua importância no processo de construção da obra de Deus, o coloca no seu devido lugar: o de uma função bem definida nesse processo.
Porque ao cultivar a terra o homem tornou-se o responsável pela existência da Árvore da Vida. Expulso da sua condição primitiva de inocência inconsciente, onde a própria natureza o alimentava sem que ele precisasse dar nada em troca, ele agora tem que concorrer para produzir esses frutos. Tornou-se Senhor do bem e do mal. Da caça, da pesca, da coleta dos frutos da terra ─ estado paradisíaco que Jesus descreve em seu discurso como aquele em que o Pai do Céu nos sustenta ─ à agricultura, à domesticação e à criação de animais, à industrialização e outras conquistas civilizatórias, a humanidade depende agora, da sua própria ação para sobreviver. E assim, o homem, que antes cultuava a Mãe-terra Deméter com sacrifícios de sangue para que ela lhes prodigalizasse seus frutos, hoje deve oferecer-lhe o sacrifício do seu trabalho e dar-lhe por fim, o seu próprio corpo como semente para que ela continue a sustentar a Árvore da Vida.
Autor: João Anatalino
Notas
[1] – Dudley Wright – Os Ritos e Mistérios de Elêusis – Madras,2004
[2] – Os Ritos de Elêusis eram realizados em duas etapas: anualmente, no santuário de Agras, no mês de fevereiro eram realizados os “Pequenos Mistérios”. E de cinco em cinco anos, em Elêusis, eram realizados os “ Grandes Mistérios”.
[3] – Dudley Wright – Os Ritos e Mistérios de Elêusis, citado p. 24
[4] – Gênesis, 3:22;23
Fonte:
https://opontodentrodocirculo.wordpress.com/2016/08/17/a-arvore-da-vida-e-os-antigos-misterios/
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