domingo, 18 de janeiro de 2015

SOU CHARLIE TAMBÉM AQUI


FLÁVIO  TAVARES
Jornalista e escritor
A engrenagem do fanatismo mórbido é simples e linear, por isto se propaga como chama em palha seca e chega ao que chegou nas tragédias do Charlie Hebdo e do mercado judaico de Paris. Surge da cegueira deformante do “pensamento único” e mata como se a matança fosse festim divino. É o oposto do humanismo. Em vez de criar ou fazer nascer (para que todos usufruam do novo), destrói, como se o ódio estivesse acima da própria vida. Por isto, os tais “fundamentalistas islâmicos” soterram os fundamentos de todas as filosofias ou religiões, incluído o Islã. Depois de matar, se entregam eles próprios à morte, na ilusão fanática de que serão “mártires” e, no Paraíso, usufruirão do hímen de 70 mil Virgens, como diz o Corão.
O fanatismo esconde, também, a repressão amorosa e erótica do mundo islâmico. Numa sociedade machista, de casamentos arranjados e sem amor, a beleza do erotismo e do desejo fica inconscientemente confinada à “vida após a morte”, numa interpretação cega da metáfora do livro sagrado. E matar leva a ser morto para se tornar “mártir” e, logo, reviver desnudo num motel eterno no céu…
Na França e toda Europa, milhões de muçulmanos imigrados do mundo árabe sofreram um choque cultural profundo. Desconheciam o direito a dissentir e a opinar livremente. Imigraram em busca de trabalho e no trabalho são europeus. Mas na rua, as mulheres usam véu ou escondem o rosto na “burka”. De fato, não se adaptaram à Europa. Ao contrário, a Europa adaptou-se a eles. E, agora, são eles que buscam mudar o estilo de vida da sociedade que os acolheu.
O choque de culturas torna agudos os conflitos, atropela e embrutece ainda mais o fanatismo religioso fundado na “verdade única”. E sair de um labirinto é mil vezes mais difícil do que entrar. Nisto consiste a tragédia e o desafio.

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No Brasil, nossos fanáticos mórbidos são de outro tipo. Não invocam a Alá, mas continuam a viver na cegueira do “pensamento único”, saudosos dos tempos da ditadura direitista.
Nesta semana, completaram-se 30 anos da escolha de Tancredo Neves à presidência da República, que abriu caminho à retomada da liberdade na sociedade brasileira, esboçada (ou iniciada) no governo do general João Figueiredo. Sabemos o que veio depois, de bem e de mal, e não o repetirei. A verdade, porém, é que o golpe de 1964 nos levou a um labirinto do qual levamos 21 anos para achar a saída. E, ao encontrá-la, estávamos tão desabituados à luz do sol que a claridade do livre debate cegou a muitos. Quando se está no escuro ou de olhos fechados, a luz feérica nos faz cegos e voltamos a ver com dificuldade. Assim, nestes 30 anos nos salvamos da cegueira mas ficamos míopes.
Enxergamos pela metade, por exemplo, ao ver e ouvir aqueles torturadores dos tempos da ditadura contando à Comissão Nacional da Verdade como seviciavam, matavam e, logo, faziam desaparecer os corpos dos opositores em fornos de usinas ou em alto mar. Orgulhosos, diziam “cumprir ordens”, repetindo palavras do nazista Eichmann ao tribunal que o julgou pelo Holocausto.

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O fanatismo é cego e se nutre da simulação. Os nostálgicos do horror não veem que a ditadura simulava tudo. Num tempo em que os abismos sociais cresciam, o “crescimento do país” era o crescimento do tumor da dívida pública. Lá começou o gigantesco endividamento externo e interno do qual não nos livramos até hoje. Neste 2015, o Orçamento Federal reservará 1 trilhão e 400 milhões de reais tão só para juros e amortizações da dívida pública. A soma corresponde a 47% de tudo o que os escorchantes impostos arrecadarão.
Os grandes bancos tornaram-se novo deus da “verdade única”, decidindo quem pode ou não pode entrar ao Paraíso e lá desfrutar das 70 mil Virgens. Depois, é claro, de matar na Terra todos os infiéis!
Por tudo isto, sou Charlie. Mas sou Charlie também aqui.
Fonte: http://wp.clicrbs.com.br/opiniaozh/2015/01/17/artigo-sou-charlie-tambem-aqui/

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