Onde
quer que um símbolo esteja relacionado a um número, aí há, quase
sempre, uma referência a Pitágoras. O que dele sabemos vem de
comentários de outros pensadores e, no que concerne às interpretações
pitagóricas dos números, a influência de pensadores tardios é imensa,
principalmente do médio-platonismo e do período renascentista, de modo
que não há como saber se realmente as interpretações correspondiam ao
verdadeiro pensamento do Mestre ou se eram apenas divagações com apenas
algum fragmento de verdade.
Um
dos símbolos mais marcantes é a Tetraktýs ou Tétrada, simbolizada pela
disposição dos números 1, 2, 3 e 4 em um triângulo equilátero. Para os
pitagóricos, a Tetraktýs era sagrada e até se jurava sobre ela. As
fontes hermenêuticas são Jâmblico e Nicômaco de Gerasa.
A palavra Tétrada é uma tradução do termo grego Τετρακτυσ, cuja pronúncia é /tetraktýs/, com tônica na última sílaba e com o y tendo o mesmo som do u francês ou do ü alemão.
Doravante, toda expressão escrita da pronúncia de um termo grego ou
latino virá entre barras, /…/. A Tétrada, como disse, refere-se à
coleção dos quatro primeiros números, 1, 2, 3 e 4. Para eles, tudo podia
ser explicado a partir dela.
Para
entender o porquê, é necessário compreender que esses quatro primeiros
números simbolizavam princípios fundamentais norteadores da reflexão
filosófica sobre o mundo. Em primeiro lugar, eles se referiam,
respectiva e equivalentemente, às noções de Mônada, Binário, Ternário e
Quaternário. A totalidade das coisas era simbolizada pela Década, ou
seja, pelo número 10, pois a soma aritmética 1+2+3+4=10 era uma
representação da totalidade abrangida pelos princípios fundamentais.
A
chave para a compreensão da Tétrada, segundo opino - e entendo não ser
definitiva ou consensual -, está na antiga questão platônica do Uno e do
Múltiplo. Olhemos em redor. Percebemos a existência de diversos seres e
vemos que estamos imersos no mundo do Múltiplo. O próprio fato de que
nos percebemos como uma identidade psíquica separada dos demais seres
nos faz ver que vivemos sob o império do Múltiplo. O mundo, em sua
totalidade, é o reino do Múltiplo. Surge aí a questão que intrigou
Platão em seu diálogo Parmênides. A leitura do Parmênides, de Platão, deveria ser acompanhada pelos comentários de Proclo. A edição de Carlos Steel dos Procli In Platonis Parmenidem Commentaria,
pela Oxford University Press, é magnífica. Se o Uno é absoluto, se é
infinito, se com seu pensamento abarca absolutamente a totalidade das
coisas com inteligência infinita, como é que podemos intuir que a
totalidade das coisas não se confunde com o Uno? Posto de outra forma,
Deus é a causa primeira das coisas do mundo, mas como é que Deus e o
Mundo não são o mesmo? Como é que podemos conceber a ideia de Deus ser
Absoluto e, no entanto, não ser o Mundo, sem cair no panteísmo? A essa
separação entre o Uno e o Múltiplo se dava o nome de diferenciação.
Antes de continuar, convém que esclareçamos o conceito de número. Para os antigos, a série dos números começava no 3. Número vem do latim numerus /númerus/, que, por sua vez, é correlacionado com o grego νόμος, /nómos/, que significa norma com caráter de lei. Seu correspondente grego é a palavra ἀριθμός, /arithmós/, que, além de significar número, também significa ordem, disposição, arranjo. Ela vem de ῥυθμός, /rhythmós/, isto é, ritmo, cuja raiz é a mesma do verbo ῥέιν, /rhéin/, que significa fluir. Assim, o fluxo do mundo implica o número.
Portanto, o conceito pitagórico de número não é o quantitativo, não é o
número do cálculo. O número é a ordem, a coerência que subjaz a relação
entre um todo e suas partes. O número é processo, ritmo e fluxo, é o
produto das relações entre os opostos. Oposição não tem o sentido de confronto. Vem do verbo opponēre, /opponêre/, formado pelo prefixo ob adjunto a ponere,
/ponêre/, ou seja, significa “pôr diante de”. A relação que surge da
oposição é definida por sua proporcionalidade intrínseca. O número é,
assim, a forma dessa proporcionalidade intrínseca, é a harmonia que
resulta do ajustamento dos opostos. Esse produto munido de harmonia
interna é representado pelo 3. Se recordarmos que ἀριθμός, /arithmós/
significa ordem, disposição ou ajustamento, fica claro o conceito de
número e porque, para os pitagóricos, o 1 não era um número. Segundo
Pitágoras, o ἀριθμός /arithmós/ é a série móvel que flui da Mônada,
simbolizada pelo número 1. Toda criatura finita é número e possui
número. Com efeito, todo ser finito é composto e, portanto, as suas
partes constituintes relacionam-se conforme proporções específicas. O
único ser absolutamente simples é o Ser Supremo, a Mônada. No Uno, o
entendimento é absoluto, é direto, não requer a mediação de outras
verdades representadas por proposições, pois o Uno é a própria Verdade.
Dessa forma, o 1 não podia ser número, pois não se caracterizava por uma
relação com um terceiro. Similarmente, o 2 não podia ser número, pois
embora indicasse a multiplicidade do duplo, um oposto ao outro, não
subsumia a relação entre esses opostos e, por conseguinte, nada dizia da
relação entre os eles.
O
Múltiplo é o universo, a totalidade das coisas. Há dois princípios
básicos no universo e esses princípios são separados: Espírito e
Matéria.
O Espírito é simbolizado pelo número 3. Por quê? Porque 3 é símbolo da Razão. Com efeito, razão, que vem do latim ratio,
/rátio/, é aquela relação entre duas coisas distintas. Na Matemática, a
razão aparece quando dizemos que A está para B assim como B está para
C. A relação entre A e C é mediada por B. Na Ontologia, a razão aparece
quando um ente A mantém com B uma relação específica. Essa relação
também pode ser expressa pela Lógica, como no silogismo, em que a
premissa menor se conecta à conclusão pela premissa maior. O Eu só se
percebe como unidade completa porque está imerso na multiplicidade. A
percepção da multiplicidade é a percepção do Não-Eu, do que é oposto (oppositum, isto é, ob-positum, /ob-pósitum/)
ao Eu, posto diante do Eu. O Eu, em sua unidade, só se dá conta da
dualidade porque a diferença é sempre uma diferença relativamente a algo
que está idealmente no ato gnosiológico. O Ternário é o símbolo do
Espírito, que participa simultaneamente da Unidade e da Dualidade,
mediante a categoria da relação, ou seja, pela
Razão. Por isso é o número do Grau 1 em certas ordens inicáticas. O
homem criado é ainda puro trabalho, porém, como a relação implica ratio /rátio/
ou razão, o iniciado é o homem racional na etapa inicial de sua
ascensão. Jâmblico considerava o 3 o primeiro número, justamente por que
ἀριθμός /arithmós/ ou numerus /númerus/ pressupõem disposição, arranjo, relação e harmonia.
O
número 4 é símbolo das coisas temporais e das coisas corpóreas. Por
isso, pode ser visto como um símbolo da materialidade, já que Matéria,
tempo e espaço são correlacionados. A associação do 4 à Matéria pode ser
decorrência histórica da associação que os antigos faziam entre o mundo
material e as quatro direções cardeais. A Matéria em si mesma é
caótica, não tem forma nem ordenação. Ela precisa da Vontade criadora do
Espírito para obter uma forma ordenada. Assim, o Universo, entendido
como o reino do Múltiplo, é representado pelos números 3 e 4, ou seja,
Espírito e Matéria, os seus dois princípios básicos. Obviamente, acima
desses dois princípios está Deus.
Finalmente,
o Binário ou Díada. O 2 simboliza o processo de diferenciação entre o
Uno e o Múltiplo. Como se dá essa diferenciação? Esse processo é
incompreensível para nós. Está além de nossa capacidade racional e
intuitiva. De fato, se encontrássemos uma explicação racional de como se
dá a diferenciação, estaríamos usando a Razão, o 3, para explicar algo
que ontologicamente a antecede. Assim, como falamos do Uno com termos
tais como Absoluto, Infinito etc., isto é, dele falamos sem que
verdadeiramente compreendamos o que seja a experiência do Absoluto e do
Infinito, assim também falamos da diferenciação sem, contudo, poder
compreender intrinsecamente o que seja. A inescapabilidade com relação à
multiplicidade é uma limitação da mente finita do homem. A Mente
Absoluta de Deus abrange todas as coisas em um único Pensamento. A ideia
de oposição é uma necessidade da mente humana que surge exatamente da
sua finitude. A dualidade como símbolo da oposição não é, assim, uma
emanação do Sumo Bem, pois, se assim fosse, seria forçoso admitir um
princípio oposto ao do Sumo Bem, ou seja, um princípio do mal, o que é
impossível. No Uno, a Vontade não se diferencia do Ato. O lapso entre a
vontade e o ato é algo da mente finita, da mente humana, não da Mente
Infinita. Embora não possamos “vivenciar” essa unidade, podemos
pressupô-la. Na Mônada, vontade e ação são idênticas. Assim, o construto
pitagórico da Díada é um artifício da mente humana para dar uma
racionalidade ao problema da Totalidade Absoluta de Deus e Sua
independência relativamente ao Múltiplo. As cosmogonias e psicogonias,
inclusive a própria ideia de criação do mundo, são mecanismos mentais de
supressão do vácuo intelectivo inerente à questão da diferenciação.
Falamos em Criação justamente como forma de suprir de intelecção aquilo
que é ininteligível.
Uma
curiosidade surge. Gershom Scholem é enfático ao mostrar as origens
neopitagóricas e neoplatônicas da Cabala medieval. Para explicar a
emanação, os cabalistas medievais da Catalunha conceberam a ideia de
tzim-tzum, um pontinho no Uno do qual se inicia a emanação até se chegar
a Malchut, a Matéria, a décima sephirah. Essa ideia é uma representação
simbólica do processo de diferenciação entre o Uno e o Múltiplo. É
evidente, porém, que são tentativas de explicação para algo que é
essencialmente incompreensível. A diferenciação é incompreensível.
Simplesmente não temos como responder à pergunta “Porque o universo é em
vez de não ser?” Note que aí já se admite que o Uno é superior ao Ser,
além do Ser, super esse, como diziam neoplatônicos com Pseudo-Dionísio Areopagita.
Se
considerarmos a totalidade dos números abrangidos pela Tétrada, os
números de 1 a 10, o que devemos ter em mente é que cada um deles possui
uma interpretação metafísica. Para os quatro primeiros números já demos
nossa interpretação. O que mais nos chama a atenção, entretanto, é a
incompreensibilidade quanto ao número 7.
Em
geral, os comentários sobre o número 7 se restringem a listar uma série
de coisas que têm sete. Nem expoentes da Renascença como Marsilio
Ficino e Pico della Mirandola escapam a essa sina irritante. Por
exemplo, o 7 é dito sagrado porque simboliza os sete planetas, os sete
dias da semana etc. e uma porção de outros exemplos que, na verdade, não
explicam coisa alguma.
Mais
uma vez, a solução está na Tétrada e na questão do Uno e do Múltiplo.
Devemos ter como referência a ideia de que Deus é uno, absoluto, que não
está sujeito nem à divisibilidade nem à multiplicidade. Ora, nós somos
espíritos e, portanto, cada um de nós é indivisível, uno. Mas somos
muitos, portanto a ideia de espírito está sujeita à multiplicidade,
justamente por estarmos falando do espírito criado, não do Espírito
Criador. A não-Multiplicidade do Criador refere-se ao Absoluto, à
unidade absoluta, total, infinita. Nós, diferentemente, somos unidades
finitas no reino do Múltiplo.
Continuemos.
Todos os números pares são divisíveis. Por exemplo, o número 6 pode ser
dividido em um par de Ternários, sendo que 3 é um número dentro da
Década. Em outras palavras, os números pares estão sujeitos à
divisibilidade, que é uma característica de imperfeição.
Resta
considerar os ímpares. O números 1, 3 e 5 são indivisíveis, mas estão
multiplamente dentro da Década. Por exemplo, 3 é indivisível, mas cabe
três vezes dentro da Década. Assim também o 5, que cabe duplamente.
Restam apenas 7 e 9. O número 9 só cabe uma vez dentro da Década e,
portanto, não está sujeito à multiplicidade, mas pode ser dividido em
três Ternários, estando, por conseguinte, sujeito à divisibilidade.
Finalmente, o número 7 é indivisível, não estando sujeito à
divisibilidade. Além disso, ele só cabe uma única vez dentro da Década
e, por isso, também não está sujeito à multiplicidade.
Em
outras palavras, de todos os números da Década, apenas o 7 é capaz de
simbolizar a Divindade em seu caráter uno, indivisível e absoluto. Dessa
forma, o 7 é símbolo do Divino em seu aspecto indivisível, infinito e
absoluto. Ele é o único número dentro da Década que é não só indivisível
como também não sujeito à multiplicidade e, portanto, é símbolo do Uno,
pois compartilha com o Uno dessas características. É por isso que o 7 é
considerado um número divino.
Vejamos
algumas consequências para a prática simbólica. Em primeiro lugar,
considere a Escada de Jacó, à qual são associadas as sete virtudes. Se a
Escada é símbolo de ascensão espiritual, então o 7 nos diz que essa
ascensão é infinita, que é divina. A Escada dos Mistérios Mitraicos tem
sete metais, a Escada do sonho de Buda tem sete cores. No Apocalipse,
João é chamado a escrever num livro o que estava prestes a ver e a
enviá-lo às sete Igrejas. Isso quer dizer que a mensagem deveria ser
universal, não às sete igrejas específicas, como a de Éfeso e outras. A
ideia dos sete pecados e das sete virtudes é a forma simbólica de dizer
que os pecados e virtudes são infinitos. São tantos setes! Toda vez que
virmos 7 num símbolo, associemos a ele o infinito e o absoluto divinos e
vejamos o que daí decorre. A similitude da plausibilidade dessa
interpretação do 7 em tantos mitos e símbolos de diversas culturas
apenas nos mostra algo arquetípico da mente humana. Mircea Eliade dá
vários outros exemplo e eu particularmente penso ser esse arquétipo uma
realidade cultural entre os povos.
Assim
como o 1 simboliza o Uno e a origem de todas as coisas abrangidas pela
Década e, portanto, a imanência, o 10 simboliza a transcendência. Se a
formação do Microcosmo, pela ação inteligente do Espírito sobre a
Matéria, se inicia no 3, entre o início e o fim, bem no meio do caminho,
está o 5, símbolo do Homem completo, representado pelo Homem
Vitruviano. Nessa etapa, o intelecto é sua principal característica A
partir do 5 começa o caminho da transcendência rumo ao Infinito, ao 10.
Aqui já tenho em mente o pensamento cabalístico medieval de natureza
pitagórica. Tão longo, tão infinito e absoluto é esse caminho que a ele
poderíamos associar o número 7 ou mais.
A
razão da carência de interpretações satisfatórias repousa precisamente
na incapacidade de introspecção simbólica a que estamos acostumados em
razão da descrença implícita que temos de que a simbologia seja algo
útil e fundamental para nossas vidas. Enquanto o homem apenas aceitar a
reflexão simbólica superficialmente e não na profundidade de sua alma,
jamais será capaz de compreender os magníficos ensinamentos dos
símbolos.
A
simbologia dos números, iniciada há dois milênios e meio pelos
pitagóricos, continuou sua evolução ainda por vários séculos a fio até
hoje. Não é uma evolução linear, obviamente. A cada etapa sofreu
adaptações a diferenças culturais e aos interesses específicos dos
intérpretes. Mas o que me surpreende é como o princípio geral contido na
Tetraktýs perpassou todas essas idiossincrasias culturais e temporais.
Autor: Rodrigo Peñaloza
Fonte: http://opontodentrocirculo.com/2020/07/21/%cf%84%ce%b5%cf%84%cf%81%ce%b1%ce%ba%cf%84%cf%85%cf%83-a-tetrada-pitagorica/