Andou muito bem o Papa Bento XVI, em
sua recente visita ao oriente médio, pedindo se respeite, ali, a liberdade
religiosa e defendendo o laicismo por ele adjetivado como "saudável".
Por muito tempo, a Igreja condenou
com veemência tanto a liberdade de crença quanto a laicidade da sociedade e do
estado. E não faz tanto tempo assim. Não precisamos retroceder à Idade Média e
aos tempos em que vigorava incontestavelmente soberana a teocracia religiosa no
ocidente. Todo o século 19 e boa parte do há pouco findo século 20 serviram de
cenário para uma tenaz luta da Santa Sé contra esses princípios, de origem
secular. Em 1832 o Papa Gregório XVI, na encíclica Mirari Vos, chamava a liberdade de consciência de "pestilenta",
denunciando que essa postulação do mundo liberal abriria caminho à perigosa introdução
da "liberdade plena de opinião" e ao desenvolvimento das falsas
religiões. Outra loucura, para ele, era a separação entre estado e igreja.
Atrás disso, dizia, sobreviriam as maiores desgraças para as nações e para a
fé. Essas mesmas ideias foram repetidas em sucessivas encíclicas de Pio IX e
Pio X. O indiferentismo religioso, o laicismo, o relativismo em matéria de fé,
o naturalismo e todas as liberdades de pensar, de crer ou deixar de crer, foram
condenados com expressões arrasadoras, nas bulas e encíclicas papais do mundo
moderno e contemporâneo. Na base dessas posições estava a ideia de que sem
religião – ou, mais precisamente, sem a única religião verdadeira – não há
moral, não há ética, não se sustenta uma sociedade saudável.
Acho que é a primeira vez que um sumo
pontífice romano, nesse sermão pronunciado no Líbano (14-09-2012), agrega ao
substantivo laicismo o adjetivo saudável. Mesmo deixando espaço ao entendimento
de que existem outras formas de laicismo condenáveis - ou seja, aquelas que se
ocupam de combater as crenças de cada um - fica expresso o reconhecimento de
que laicidade não é sinônimo de imoralidade. É quase o reconhecimento explícito
de que, com ou sem religião, há no ser humano uma vocação natural para o bem,
para a ética, para o justo, para o progresso. Defendendo o pluralismo
religioso, o Papa afina seu discurso com a modernidade. Mais do que isso,
acenando para a prática do laicismo, reconhece que onde crenças religiosas se
arvoram em juízes das atitudes humanas, descamba-se para graves violações aos
direitos humanos. Não é por outra razão que o fundamentalismo religioso é o
responsável hoje, como o foi no curso de toda a história, por nossas mais
cruéis tragédias.
O mundo fica melhor na medida em que
sua gestão política e social se liberta da tutela religiosa. Isso não significa
divorciar-se da espiritualidade ou rejeitá-la. Só com o respeito ao pluralismo,
às liberdades individuais e políticas pode-se desenvolver a genuína
espiritualidade. O autêntico laicismo sempre é saudável porque, sem combater
crenças individuais, admite a existência de uma gama infinita de formas de
interpretar o divino e o humano, a consciência e o universo, buscando, no
conjunto de tudo, o sentido da vida.
Paradoxalmente, aqueles mesmos que
ainda ontem se rebelaram contra a vitória do laicismo sobre a ditadura da fé
reconhecem, agora, que só numa sociedade genuinamente laica há espaço para
vicejarem e crescerem os verdadeiros valores do espírito. Sinal dos tempos!
Bons sinais. Plenamente concordes com a sentença de Jesus de Nazaré, segundo a
qual "o espírito sopra onde quer". O que se pode ver é que, cada vez
mais, espiritualidade passa a ser sinal de humanismo. Migra do inescrutável
reinado do mistério e do dogma para o terreno aberto e democrático das
experiências humanas, contra cuja corrente, quase sempre, se posicionaram as
castas sacerdotais. É a força do espírito livre, centelha divina presente no
homem. A ela tudo um dia se há de conformar. Inclusive as religiões, quando
compreenderem que o verdadeiramente sagrado é o natural. Não o sobrenatural.
Milton R. Medran Moreira
Advogado e jornalista, presidente do Centro Cultural
Espírita de Porto Alegre
Zero Hora – Domingo, 23 de setembro
de 2012 – página 15